domingo, 18 de julho de 2010

Devaneios

Cheio do Espírito Santo, voltou Jesus do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde foi tentado pelo demônio durante quarenta dias. Durante este tempo ele nada comeu e, terminados estes dias, teve fome. Disse-lhe então o demônio: Se és o Filho de Deus, ordena a esta pedra que se torne pão. Jesus respondeu: Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus (Dt 8,3). O demônio levou-o em seguida a um alto monte e mostrou-lhe num só momento todos os reinos da terra, e disse-lhe: Dar-te-ei todo este poder e a glória desses reinos, porque me foram dados, e dou-os a quem quero. Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu. Jesus disse-lhe: Está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e a ele só servirás (Dt 6,13). O demônio levou-o ainda a Jerusalém, ao ponto mais alto do templo, e disse-lhe: Se és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque está escrito: Ordenou aos seus anjos a teu respeito que te guardassem. E que te sustivessem em suas mãos, para não ferires o teu pé nalguma pedra (Sl 90,11s.). Jesus disse: Foi dito: Não tentarás o Senhor teu Deus (Dt 6,16). Depois de tê-lo assim tentado de todos os modos, o demônio apartou-se dele até outra ocasião.

(LUCAS, CAP. 4, 1:13)

Os professores foram procurar uma igreja copta próxima para pesquisar mais a respeito do monofisismo, deixaram Hafiz no Hotel e seguiram seu curso...

Hafiz estava com muito sono, ele não entendia como podia estar tão entregue, afinal ele era o mais jovem da trupe, porém ele estava totalmente entregue, e agradeceu a todos os santos quando pode finalmente esticar-se na cama e sentir o travesseiro, aquele travesseiro tinha cheiro de coisa antiga, devia ser feito de penas de cisne, quem sabe de um cisne que testemunhara o fim do apogeu egípcio, havia hieróglifos estilizados pintados na parede o apelo que era feito ante aquela cultura milenar era intenso.

Dona Teresa tinha sido muito hospitaleira e tinha enviado as melhores roupas de cama para nós apesar de meus protestos afinal tinha feito votos de pobreza e estava vivendo mais luxuosamente do que quando estava com minha família, mas ela tinha sido assertiva afinal não poderia deixar de tratar muito bem um padre que ali estava hospedado...

O sono tomava conta de meu ser, cada parte do corpo que eu lembrava adormecia instantaneamente, o zumbido constante da rua embalava-me, a luz difusa, amarelo ouro escorria pelas vidraças, vindo de cima, como uma chuva amarela... Outras vezes, esbarrava e se achatava na porta... O sol esta oculto, mas enviava uma estranha luz, luz amarela, que se derramava sobre a cidade, sobre as pessoas, os edifícios, casas, tudo ficava iluminado era uma luz inesperada quase que “fabulosa” e junto com a luz um calor uma sensação morosa, o sono cada vez maior, o topor invadindo, inebriando, semelhante vinho, ou sera como morfina, era analgésica a sensação, não quero mais lutar entrego-me o sonho apenas acontece...

Ele chega devagar sem um contexto, sem enredo, sem forma, apenas vem, abraça-me, seduz, toca-me; sinto-me como um inseto atraído por uma lamparina não há escapatória estou submetido, novamente o sonho não consigo entender, eu e o professor Augusto em uma igreja, conversamos com um padre, ele tem voz doce parece estar bem seguro do que diz não consigo entender seu idioma o professor parece muito perturbado, olha-me aflito eu não consigo entender, aquela situação atormenta-me saio dali e caminho pela igreja, parece ser uma catedral dedicada a São Tomé apóstolo, caminho observo a arquitetura, os vitrais a grandiosidade do lugar, apesar do tamanho o local acolhe poucas pessoas. As pessoas têm uma cor característica são queimadas de sol, lembram bastante meus conterrâneos a exceção do cabelo e do formato do rosto.

De repente um estrondo, gritos, um alarme de incêndio dispara, as pessoas tentam sair, mas não conseguem as portas estão lacradas pela força das águas não consigo entender da onde provém aquele turbilhão parto para salvar a bíblia em minha ânsia de resgate lembro-me que o evangelho era segundo São Lucas, e assim dizia: “Disse-lhe então o demônio: Se és o Filho de Deus, ordena a esta pedra que se torne pão. Jesus respondeu: Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus (Dt 8,3).”

O balançar do bote últimos momentos que sinto com meus iguais, irmãos semelhantes aos de José que abandonam que o vendem sem qualquer constrangimento, Caim embebido pela inveja assim sinto-lhes levam-me silenciosos parecem entender minha aflição... Angústia... Desespero...

A renúncia de mim mesmo, não teria a companhia de outro igual, mas sim de seres totalmente alheios ao que eu já vivera, delitos praticara, pagara por delitos, excomungado fora não pelo costume, mas sim pelas atitudes, provaria não ser aquele que tinham condenado, provaria...

Provaria o fel do abandono a negativa dos semelhantes que simplesmente ali expor-me-iam, não sem antes esquecer dos valores e chacotearem daquele ao degredo condenado, infeliz figura, triste ser, amorfa criatura, não, não, não há justificativa para tão vil ato de má fé a morte condenado mais dignidade teria a ser transformado em selvagem, abandonado a própria sorte sem testemunho, sem valor algum, apenas solto ao sabor do destino, assim como bandeira ao sabor do vento, temperado estava pelo ferreiro tempo, não tinha escapatória a separação era imensa, um oceano inteiro, não havia como voltar, as pontes tinham sido cortadas.

Ali o último raio, o fio de esperança, sim talvez eles estivessem apenas amedrontando-o para que nunca mais errasse, sim, sim, sim uma esperança brotava em seu coração semelhante planta brotando após incêndio destruidor, após granizo feroz, após ciclone medonho, não restava dúvidas ali deixariam apenas por um momento e ele então arrependido de todo o seu ser, como já estava, sim estava arrependido, queria apenas sua mãe, sua esposa, sua rainha, acalentando-o dizendo: “Calma, filho, tudo irá ficar bem”, sim tudo ficaria bem... Bem... Muito bem...

Ali ele não poderia ser deixado nenhum cristão poderia ser deixado, no meio daquela imensidão, daquele cenário vasto, um gigante esmeralda, sim aquela imensidão vasta verde, só podia ser um gigante esmeralda e ele personificava o horror, o medo, o terror, não podia, não queria, não suportaria ver, sentir, ouvir, falar e degustar...

Chegaram e aportaram, ele estava convencido, sim o deixariam por algum tempo, apenas ririam dele, então ele retornaria e como sempre sua mãe afirmava : “Calma, filho, tudo irá ficar bem”, bem... Muito bem... Assim tinha que ser assim seria, eles o desamarram tudo faz parte do ritual já espera o início da zombaria, mas ela não vem todos carregam um cenho sobrecarregado ele não pode acreditar quando entregam-lhe uma bíblia velha e a pistola, lhe explicam que há munição para dois tiros, ele não pode acreditar, outro bote chega ao lado, o martírio será cumprido com um companheiro, o pesado fardo, diminui pouco, mas diminui...

Os botes parecem estar com muita pressa, começam o caminho de retorno mal nos deixam naquela paragem, olho atentamente para aqueles pontos que vão pouco a pouco diminuindo de tamanho, quando olho para o lado vejo meu companheiro armando a pistola e descarregando-a em si mesmo não consigo acreditar ele sentenciara-se a morte e para minha aflição eu encontrava-me totalmente só... Eu murmuro palavras que ainda serão escritas:

— "Ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.”

Tanto chorei, lamentei, que a natureza, comigo coro formou e uma fina chuva começou a cair, o triste pio da Acauã, ouvia-se próximo, e os gentios de mim solidarizando choravam também, e triste foi aquele começo, triste foi aquela tarde, a constatação de que ali sozinho da companhia civilizada viveria, faltava-me coragem para agir como meu companheiro, restava-me apenas o trabalho de enterrá-lo naquela terra macia, de um marrom especial de um tom reconfortante, não um marrom qualquer, não, era um tom todo especial de marrom, trazia inquietude e ao mesmo tempo parecia a terra fértil de rio aquela terra gostosa da margem que quando nós andamos afunda e massageia a planta dos nossos pés provocando ondas de carinho, que nos segura, refresca, alivia...

Após enterrar meu companheiro, no alto da serra onde os índios tinham levado-me para mostrar-me a imensidão verde da terra e o azul do mar e diante de tão grandes vastidões abro ao acaso e efetuo a leitura da bíblia: “O demônio levou-o em seguida a um alto monte e mostrou-lhe num só momento todos os reinos da terra, e disse-lhe: Dar-te-ei todo este poder e a glória desses reinos, porque me foram dados, e dou-os a quem quero. Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu. Jesus disse-lhe: Está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e a ele só servirás (Dt 6,13).” Era um sinal ele estava certo que aquele era um sinal ele deveria fundar ali uma cidade, na borda daquele imensidão verde daquele campo, chamá-la-ia de Santo André da Borda do Campo pois como o apóstolo tinha sido o primeiro a ser chamado ele também seria o primeiro a pregar para aqueles gentios e assim ele João Ramalho pagaria por todos os seus pecados...

Hafiz, Hafiz, Hafiz, meu jovem vamos acorde temos muita coisa a fazer, e você dormindo não é possível vamos nos preparar, pois iremos partir para a Etiópia precisamos ir mais fundo nesse mistério de Preste João e parece que sua última aparição ocorreu ali naquele país, por sorte, o professor Aziz contatou um guia conhecido, o senhor Bonono, para nos ajudar e eu de minha parte fiz o pedido da minha licença especial para a Universidade de Coimbra, assim teremos seis meses para pesquisarmos em campo, todos os acontecimentos, seria interessante você entrar em contato com seu superior para podermos empreender nossa viagem.

Concordei meneando a cabeça estava ainda confuso tentando recapitular aqueles sonhos confusos, nos quais eu aparecia como personagem ou como observador e assim preparei-me para deixar o Egito e rumar para a Etiópia, já tinha viajado mais que todas as gerações da minha família em apenas quinze dias o que será que o destino ainda reservava-me despedi-me afetuosamente de Dona Teresa que tão bem acolheu-nos e também do Professor Aziz um grande conhecedor dos pergaminhos e textos antigos...

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