terça-feira, 3 de agosto de 2010

A Arca da Aliança

8. Far-me-ão um santuário e habitarei no meio deles. 9. “Construireis o tabernáculo e todo o seu mobiliário exatamente segundo o modelo que vou mostrar-vos”. 10. “Farão uma arca de madeira de acácia; seu comprimento será de dois côvados e meio, sua largura de um côvado e meio, e sua altura de um côvado e meio. 11. Tu a recobrirás de ouro puro por dentro, e farás por fora, em volta dela, uma bordadura de ouro. 12. Fundirás para a arca quatro argolas de ouro, que porás nos seus quatro pés, duas de um lado e duas de outro. 13. Farás dois varais de madeira de acácia, revestidos de ouro, 14. Que passarás nas argolas fixadas dos lados da arca, para se poder transportá-la. 15. Uma vez passados os varais nas argolas, delas não serão mais removidos. 16. Porás na arca o testemunho que eu te der. 17. Farás também uma tampa de ouro puro, cujo comprimento será de dois côvados e meio, e a largura de um côvado e meio. 18. Farás dois querubins de ouro; e os farás de ouro batido, nas duas extremidades da tampa, um de um lado e outro de outro, 19. fixando-os de modo a formar uma só peça com as extremidades da tampa. 20. Terão esses querubins suas asas estendidas para o alto, e protegerão com elas a tampa, sobre a qual terão a face inclinada.
21. Colocarás a tampa sobre a arca e porás dentro da arca o testemunho que eu te der. 22. Ali virei ter contigo, e é de cima da tampa, do meio dos querubins que estão sobre a arca da aliança, que te darei todas as minhas ordens para os israelitas.”

Nossa procura por Preste João continua pela Etiópia, a história dele mistura-se com a de um objeto considerado sagrado, a arca da aliança, nosso guia é Senelique Bonono e ele explica que em todas as igrejas ortodoxas etíopes, ou seja, cerca de trinta mil igrejas, possuem réplicas da arca da aliança, que foi um presente de Salomão para, Menelike, filho do rei com a rainha de Sabá, os etíopes crêem que a arca verdadeira está em poder deles, para iniciar nossas investigações iremos para um dos mosteiros mais antigos da Etiópia, Debre Damo, na antiga terra bíblica de Ophir.

A Etiópia é um dos mais antigos países cristãos em África com uma forte ligação com o Oriente Médio e, Debre Damo é a fonte que guarda os mais antigos manuscritos cristãos, mas para chegar até lá não será fácil, pois o mosteiro fica no alto de uma colina e o acesso só se faz por meio de cordas o Professor Augusto fica angustiado com esse detalhe, e Senelique explica que é o único modo de conseguir atingir o mosteiro que todos os monges sobem através de cordas e só os homens tem acesso ao local e inclusive os animais que são levados são todos machos.

Percorremos estradas poeirentas que desembocam no norte da Etiópia quando chegamos próximo ao local Senelique pára o veículo e nos aponta a colina que possui topo achatado, Debre Damo, fica a dezesseis quilômetros da estrada principal numa rua de terra, atravessamos um riacho que se encontra quase seco nosso guia explica que na época das chuvas a travessia só seria possível por barco, olho e fico admirado com a natureza, muito parecida com minha terra natal Arg-e-Bam.

Senelique explica também que passaremos a noite no mosteiro porque os ladrões atacam quando escurece, minha ansiedade aumenta ainda mais, o carro pára em frente a um íngreme rochedo, depois de um longo caminho, finalmente, chegamos agora precisamos nos preparar para a escalada num sistema antigo e rústico de cordas, primeiramente tentamos calçados, mas depois de várias infrutíferas tentativas, constatamos que o melhor modo seria descalço e subimos difícil e lentamente, conseguimos imaginar a loucura diária que os monges dos mais jovens aos mais velhos estão sujeitos. Após a escalada procuramos um local para acamparmos, Senelique explicou que era um grande privilégio podermos acampar naquele local sagrado.

No outro dia nos encontramos com o guardião dos pergaminhos ao qual após um breve interrogatório, deixa-nos adentrar a câmara onde os manuscritos estão guardados há séculos, adentrar ali era respirar a história, reviver e sentir cada momento passado como único e indescritível.

—Hafiz, meu pequeno deixe as formigas em paz e venha até aqui quero mostrar-lhe algo que acontece no horizonte. – largo em disparada em direção de meu pai, momentos raros, pois sempre estava viajando, aponta-me algo indistinto no horizonte, após um esforço consigo divisar três homens caminhando eles param em um determinado lugar e começam a cavar.

—O que, que eles estão fazendo papai? – pergunto.

—Eles estão guardando o que consideram ser muito importante, conhecimento, ao lado deles esta uma caixa que contém pergaminhos antigos, onde estão registrados as leis, os costumes e a religião e assim eles se mantêm como comunidade, assim o homem conseguiu civilizar-se e adquirir a habilidade de criar as nações...

Hospitalidade, o ato mais sagrado segundo meu pai que o homem tinha que demonstrar a seu semelhante não importando, a classe a qual pertencia nem suas convicções culturais e religiosas, assim meu pai dizia:

—O que nos torna plenamente humano é reconhecer a necessidade de nosso irmão, venha ele da onde vier, dessa maneira, não há como existir a guerra, sendo bem tratado o mau e bom tornam-se aliados, iguais, e coexistem em harmonia...

Nunca compreendi meu pai, até aquele momento, naquela caverna, cujo teto lembrava a abóbada de uma catedral católica, sim o conhecimento elevava o homem e por isso era sagrado, devia ser guardado e mantido como foi com o fogo antes do mesmo ser dominado, era isso, precisávamos de um método para dominar o conhecimento e recriá-lo a bel-prazer como fazíamos com fósforos e isqueiros...

O monge faz uma reverência e pega o primeiro pergaminho, desenrola-o cuidadosamente, o professor Augusto parece muito excitado coloca-se por cima do ombro do venerando monge, súbito estremece parece perceber algo e caminha até para frente, respeitosamente pede o pergaminho ao desconfiado monge que pouco-a-pouco como se perdesse um membro do próprio corpo estende o pergaminho ao professor...

A luz que projetava dentro da caverna era tênue, o pergaminho parecia translúcido, mas a visão arguta do professor tinha se fixado em um perímetro, o tempo parecia não existir, pois, não havia referências, quem sabe procurando um gotejar...

O monge olhava com uma curiosidade devocional, o professor e o pergaminho, seus pensamentos quais seriam? Deveria estar pensando que aquele homem branco, era como um macaco e com um pergaminho tão precioso, não poderia descuidar-se, pois a qualquer momento poderia danificá-lo, e ele provavelmente seria morto, pois era um guardião e pagava com a vida qualquer coisa que ocorresse com o pergaminho, essa era a tradição.

O professor, em voz alta, começa recitar o que está escrito, sua voz ganha uma ressonância magnânima devido à acústica da caverna, assim ele prossegue:

—Era mouro, de barba cerrada e com quarenta anos, partira da ARABIA FELIX, seu nome, Baltasar se traduz por “Deus manifesta o Rei”. Os reis magos, como se pretendia dizer que representavam os reis de todo o mundo, representando as três raças humanas existentes, em idades diferentes. Assim, Melquior entregou-Lhe ouro em reconhecimento da realeza; Gaspar, incenso em reconhecimento da divindade; e Baltasar, mirra em reconhecimento da humanidade.

O professor interrompe a leitura e fica pensativo, aproximo-me dele e aguardo parece uma eternidade até que o guardião pede para restituir-lhe o pergaminho o professor lhe entrega e então me olha parece estar desorientado peço-lhe para sairmos um pouco daquele ambiente claustrofóbico e caminhar-mos ao ar livre ele concorda e saímos.

—Apesar de acrescentar dados novos a nossa pesquisa os pergaminhos que aqui encontram-se referem-se a um período posterior, sinto que as informações colhidas terão valia no futuro, por hora teremos que nos basear em outra pista que seus pergaminhos indicam acerca do mito do apóstolo São Tomé, não pense que escondo-lhe algo meu caro Hafiz, mas as ramificações que a lenda de Preste João apresenta são diversas, no momento, precisamos de mais alguns dados para entender o contexto todo, compreende?

—Acho que sim professor. – respondo meio aturdido diante de tantas dúvidas, era claro que a referência a Baltazar tinha despertado alguma lembrança no professor que ele não queria dividir ainda, a mudança do foco era estranho, mas também emocionante, pois conhecia muito pouco a respeito daquele apóstolo, na verdade só conhecia o fato de sua incredulidade.

E assim agradecemos muito aos monges que tão bem nos acolheram em Debre Damo e partimos para o aeroporto, lá nos despedimos de Senelike nosso fiel guia...

Nosso destino segundo o professor era a Índia, pois lá havia um culto muito importante a figura do apóstolo São Tomé, mais uma vez entramos no avião, decolamos e visualizamos a terra ficando cada vez mais distante e as nuvens mais próximas, depois de tantas aventuras a poltrona parecia uma cama de casal e quando dei por mim já estava sonhando...

domingo, 25 de julho de 2010

Hafiz Muadar Kadafi

Como podes ver o vermelho, o verde e o escarlate. A menos que primeiro vejas a luz? Quando tua vista é ofuscada por cores, Essas cores velam de ti a luz. Mas quando a noite vela essa cores de ti, Percebes que só são vistas por meio da luz (MI, 1121ss).

Novamente estávamos no aeroporto, local de passagem, pessoas chegavam, partiam, vinham e iam, não reparavam uma nas outras, apenas passavam, e ali estava eu junto ao professor, nossa aventura nos levava agora a Etiópia rumo ao desconhecido.

O professor Augusto parecia ficar chateado em aeroportos gostaria muito de atenuar-lhe a angústia, mas ele parecia extremamente enfastiado, de repente ele me faz uma pergunta que desenterra fantasmas do passado, mas como eu era muito grato a ele fiz um tremendo esforço para responder a sua questão e a conversa desenrola-se neste tom:

— Meu caro Hafiz não consigo entender o seu sobrenome Miguel Passos devido você ser iraniano, você poderia explicar-me qual o motivo do seu sobrenome ser cristão e não islâmico?

— Professor o senhor é muito arguto a razão do meu sobrenome ser cristão é uma longa história meu verdadeiro nome é Hafiz Muadar Kadafi...

— Kadafi, Kadafi, Kadafi, onde você esta meu filho vamos esta na hora de você aprender as histórias sagradas, Kadafi, venha vamos, seu avô está esperando para lhe falar sobre Jesus, venha meu filho seu pai não tarda a voltar e ele não gosta disso você sabe, venha meu filho vamos...

— Mamãe meu nome é Hafiz porque a senhora me chama pelo sobrenome Kadafi? – pergunta um menininho com aproximadamente sete anos entrando correndo para dentro da casa.

— Eu te chamo de Kadafi para celebrar o nome de seu pai, por isso quando perguntarem seu nome você deve responder que é Hafiz Muadar Kadafi, filho de Ibsen Muadar Kadafi e Maria Linhares Passos, entendeu minha riqueza? – pergunta a mãe segurando com doçura o queixo da criança.
— Sim mamãe. – responde brejeiramente o menininho. De dentro de um cômodo ouve-se a voz rouca de um ancião:
— Hafiz, Hafiz, Hafiz, onde está este menino tanto para aprender, e tão pouco tempo para ensinar, e o meu café minha filha não chega nunca, e não esqueça amargo como deve ser a vida porque se for doce enjoa, minha mãe tinha vindo de Portugal ainda menina, meu avô era um comerciante que construíra um lar em Arg-e-Bam minha avó falecera com minha mãe ainda moça, ela foi educada por meu avô hibridamente na fé cristã e islâmica ele dizia que Deus era único apenas os profetas variavam e por isso as mensagens modificavam-se, mas a fonte era a mesma.
Assim ele também me criou muito a contragosto do meu pai, mamãe queria que eu chamasse Miguel em homenagem ao arcanjo, meu pai foi totalmente contra e deu-me o nome de Hafiz que minha mãe não pronunciava...
— Hafiz, Hafiz, Hafiz, qual foi a última história que paramos o que acontecia seu discípulo mais fervoroso, Pedro, negava por três vezes aquele que chamara de rabi (mestre).
Pedro negou a Jesus, na casa do sumo sacerdote, Jesus enfrentava a interrogatório pelo Sinédrio. O sumo sacerdote invocava o nome de Deus para exigir uma resposta do acusado à sua pergunta: “Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus”. Jesus disse: “Eu sou, e vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu”. Jesus não vacilou, confessou a verdade.
— Ele fez o certo não é vovozinho? – pergunta-me ingenuamente aquela figurinha ao que respondo
— Isso meu tesouro, quando Jesus foi preso no Getsêmani, Pedro reagiu com a espada e foi repreendido por Cristo, “Aquele que vive pela espada morrerá pela espada” logo depois, os apóstolos foram dispersos, fugindo com medo de serem presos com Jesus, Pedro negou a Jesus três vezes, aproveitemos algumas lições:
• Simão nega sua sociedade com Jesus ao ser perguntado pela criada. Entrando na casa e confessando a sua fé em Cristo, Pedro não teria motivo para mentir
— Porque mentir é feio não é vovozinho?
— Isso mesmo meu netinho é muito feio mentir.
• Envolvido pelos guardas, Pedro nega Jesus pela segunda vez, ele não se identificou como discípulo de Cristo, enquanto Cristo era interrogado e padecia nas mãos dos guardas, Pedro viu os guardas perto dele e negou ser discípulo de Jesus.
• Ao encontrar um parente de Malco, o mesmo que Pedro havia cortado a orelha no Getsêmani, Pedro talvez por medo de uma vingança, nega Jesus pela terceira e última vez.
— É quando o galo canta não é vovozinho. – pergunta-me todo interessado aqueles olhinhos curiosos.
— Excelente é isso mesmo meu garoto, mas você percebe quantas oportunidades nós perdemos porque imaginamos como alguém reagirá antes de oferecer-lhe a oportunidade de ouvir a verdade? Será que a nossa covardia, vergonha ou timidez está impedindo a salvação de pessoas ao nosso redor?
— Eu não sei vovozinho essas perguntas são por demais difíceis... – responde-me brejeiramente aquela criaturinha.
— Continuemos então: Pedro acabou de negar Jesus pela terceira vez quando o galo cantou, cumprindo a profecia de Cristo e relembrando esse discípulo das palavras de seu mestre, pois é certo e verdadeiro que quando uma pessoa boa tropeça e erra a consciência a acusa, deste modo, Pedro se lembra das palavras do Senhor e procura reconciliar-se com o seu Mestre. São Lucas acrescenta mais um fator importante. Na hora que Pedro negou a Jesus pela terceira vez, o Senhor olhou para ele. Quando pecamos, Jesus olha para todos nós. Podemos esconder nossos pecados de outras pessoas. Podemos até nos enganar, justificando nossas faltas. Mas jamais esconderemos o nosso erro de Deus. Ele vê tudo, e julgará a todos.
— Até o senhor vovozinho? – inquisidoramente interrompe meu discurso.
— Até tu, meu querido, todos serão julgados... Mas pensemos: o que será que Pedro viu quando Jesus olhou para ele? Será que sentiu o peso da rejeição por ter lhe rejeitado?
— Ele bem que merecia não é vovozinho.
—Certamente merecia isso. Mas, será que viu a repreensão e a condenação por sua atitude falha na hora de provação? Jesus não pôde aprovar o erro. Ao mesmo tempo, será que Pedro enxergou, no meio das acusações e injustiças dos homens, o amor de Jesus e seu desejo de reconciliar-se com seu discípulo vacilante? Com certeza, a vontade do Senhor é de trazer os seus servos falhos de volta à comunhão com ele.
E quando nós pecamos, o que enxergamos quando olhamos para Jesus? Se persistirmos no pecado, precisamos sentir a repreensão e até a rejeição. Mas o pecador arrependido encontra na pessoa de Jesus a vontade de perdoar e reconciliar-se. Jesus nos ama, e quer nos salvar eternamente. É essencial enxergar a compaixão e amor no olhar dele.
Lembro-me perfeitamente de meu avô narrando sobre o episódio da negação de Cristo por parte de Pedro como contei-lhe a pouco, eu era muito apegado ao meu avô e minha mãe, gostava muito de meu pai por isso mantive o primeiro nome Hafiz o segundo nome foi homenagem a minha mãe Miguel e Passos foi para homenagear meu avô era seu sobrenome ele era cristão e eu devo-lhe muito pois se vivo estas aventuras hoje é tudo graças ao senhor e a ele que ensinou-me o português e as sagradas escrituras.
— Isso explica porque fala tão bem meu idioma meu caro Hafiz, aprendeu com seu avô, praticamente uma segunda língua materna. E, veja, chegamos em Addis Abeba, sua história cativou-nos pela viagem inteira, excelente.

domingo, 18 de julho de 2010

Devaneios

Cheio do Espírito Santo, voltou Jesus do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde foi tentado pelo demônio durante quarenta dias. Durante este tempo ele nada comeu e, terminados estes dias, teve fome. Disse-lhe então o demônio: Se és o Filho de Deus, ordena a esta pedra que se torne pão. Jesus respondeu: Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus (Dt 8,3). O demônio levou-o em seguida a um alto monte e mostrou-lhe num só momento todos os reinos da terra, e disse-lhe: Dar-te-ei todo este poder e a glória desses reinos, porque me foram dados, e dou-os a quem quero. Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu. Jesus disse-lhe: Está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e a ele só servirás (Dt 6,13). O demônio levou-o ainda a Jerusalém, ao ponto mais alto do templo, e disse-lhe: Se és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque está escrito: Ordenou aos seus anjos a teu respeito que te guardassem. E que te sustivessem em suas mãos, para não ferires o teu pé nalguma pedra (Sl 90,11s.). Jesus disse: Foi dito: Não tentarás o Senhor teu Deus (Dt 6,16). Depois de tê-lo assim tentado de todos os modos, o demônio apartou-se dele até outra ocasião.

(LUCAS, CAP. 4, 1:13)

Os professores foram procurar uma igreja copta próxima para pesquisar mais a respeito do monofisismo, deixaram Hafiz no Hotel e seguiram seu curso...

Hafiz estava com muito sono, ele não entendia como podia estar tão entregue, afinal ele era o mais jovem da trupe, porém ele estava totalmente entregue, e agradeceu a todos os santos quando pode finalmente esticar-se na cama e sentir o travesseiro, aquele travesseiro tinha cheiro de coisa antiga, devia ser feito de penas de cisne, quem sabe de um cisne que testemunhara o fim do apogeu egípcio, havia hieróglifos estilizados pintados na parede o apelo que era feito ante aquela cultura milenar era intenso.

Dona Teresa tinha sido muito hospitaleira e tinha enviado as melhores roupas de cama para nós apesar de meus protestos afinal tinha feito votos de pobreza e estava vivendo mais luxuosamente do que quando estava com minha família, mas ela tinha sido assertiva afinal não poderia deixar de tratar muito bem um padre que ali estava hospedado...

O sono tomava conta de meu ser, cada parte do corpo que eu lembrava adormecia instantaneamente, o zumbido constante da rua embalava-me, a luz difusa, amarelo ouro escorria pelas vidraças, vindo de cima, como uma chuva amarela... Outras vezes, esbarrava e se achatava na porta... O sol esta oculto, mas enviava uma estranha luz, luz amarela, que se derramava sobre a cidade, sobre as pessoas, os edifícios, casas, tudo ficava iluminado era uma luz inesperada quase que “fabulosa” e junto com a luz um calor uma sensação morosa, o sono cada vez maior, o topor invadindo, inebriando, semelhante vinho, ou sera como morfina, era analgésica a sensação, não quero mais lutar entrego-me o sonho apenas acontece...

Ele chega devagar sem um contexto, sem enredo, sem forma, apenas vem, abraça-me, seduz, toca-me; sinto-me como um inseto atraído por uma lamparina não há escapatória estou submetido, novamente o sonho não consigo entender, eu e o professor Augusto em uma igreja, conversamos com um padre, ele tem voz doce parece estar bem seguro do que diz não consigo entender seu idioma o professor parece muito perturbado, olha-me aflito eu não consigo entender, aquela situação atormenta-me saio dali e caminho pela igreja, parece ser uma catedral dedicada a São Tomé apóstolo, caminho observo a arquitetura, os vitrais a grandiosidade do lugar, apesar do tamanho o local acolhe poucas pessoas. As pessoas têm uma cor característica são queimadas de sol, lembram bastante meus conterrâneos a exceção do cabelo e do formato do rosto.

De repente um estrondo, gritos, um alarme de incêndio dispara, as pessoas tentam sair, mas não conseguem as portas estão lacradas pela força das águas não consigo entender da onde provém aquele turbilhão parto para salvar a bíblia em minha ânsia de resgate lembro-me que o evangelho era segundo São Lucas, e assim dizia: “Disse-lhe então o demônio: Se és o Filho de Deus, ordena a esta pedra que se torne pão. Jesus respondeu: Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus (Dt 8,3).”

O balançar do bote últimos momentos que sinto com meus iguais, irmãos semelhantes aos de José que abandonam que o vendem sem qualquer constrangimento, Caim embebido pela inveja assim sinto-lhes levam-me silenciosos parecem entender minha aflição... Angústia... Desespero...

A renúncia de mim mesmo, não teria a companhia de outro igual, mas sim de seres totalmente alheios ao que eu já vivera, delitos praticara, pagara por delitos, excomungado fora não pelo costume, mas sim pelas atitudes, provaria não ser aquele que tinham condenado, provaria...

Provaria o fel do abandono a negativa dos semelhantes que simplesmente ali expor-me-iam, não sem antes esquecer dos valores e chacotearem daquele ao degredo condenado, infeliz figura, triste ser, amorfa criatura, não, não, não há justificativa para tão vil ato de má fé a morte condenado mais dignidade teria a ser transformado em selvagem, abandonado a própria sorte sem testemunho, sem valor algum, apenas solto ao sabor do destino, assim como bandeira ao sabor do vento, temperado estava pelo ferreiro tempo, não tinha escapatória a separação era imensa, um oceano inteiro, não havia como voltar, as pontes tinham sido cortadas.

Ali o último raio, o fio de esperança, sim talvez eles estivessem apenas amedrontando-o para que nunca mais errasse, sim, sim, sim uma esperança brotava em seu coração semelhante planta brotando após incêndio destruidor, após granizo feroz, após ciclone medonho, não restava dúvidas ali deixariam apenas por um momento e ele então arrependido de todo o seu ser, como já estava, sim estava arrependido, queria apenas sua mãe, sua esposa, sua rainha, acalentando-o dizendo: “Calma, filho, tudo irá ficar bem”, sim tudo ficaria bem... Bem... Muito bem...

Ali ele não poderia ser deixado nenhum cristão poderia ser deixado, no meio daquela imensidão, daquele cenário vasto, um gigante esmeralda, sim aquela imensidão vasta verde, só podia ser um gigante esmeralda e ele personificava o horror, o medo, o terror, não podia, não queria, não suportaria ver, sentir, ouvir, falar e degustar...

Chegaram e aportaram, ele estava convencido, sim o deixariam por algum tempo, apenas ririam dele, então ele retornaria e como sempre sua mãe afirmava : “Calma, filho, tudo irá ficar bem”, bem... Muito bem... Assim tinha que ser assim seria, eles o desamarram tudo faz parte do ritual já espera o início da zombaria, mas ela não vem todos carregam um cenho sobrecarregado ele não pode acreditar quando entregam-lhe uma bíblia velha e a pistola, lhe explicam que há munição para dois tiros, ele não pode acreditar, outro bote chega ao lado, o martírio será cumprido com um companheiro, o pesado fardo, diminui pouco, mas diminui...

Os botes parecem estar com muita pressa, começam o caminho de retorno mal nos deixam naquela paragem, olho atentamente para aqueles pontos que vão pouco a pouco diminuindo de tamanho, quando olho para o lado vejo meu companheiro armando a pistola e descarregando-a em si mesmo não consigo acreditar ele sentenciara-se a morte e para minha aflição eu encontrava-me totalmente só... Eu murmuro palavras que ainda serão escritas:

— "Ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.”

Tanto chorei, lamentei, que a natureza, comigo coro formou e uma fina chuva começou a cair, o triste pio da Acauã, ouvia-se próximo, e os gentios de mim solidarizando choravam também, e triste foi aquele começo, triste foi aquela tarde, a constatação de que ali sozinho da companhia civilizada viveria, faltava-me coragem para agir como meu companheiro, restava-me apenas o trabalho de enterrá-lo naquela terra macia, de um marrom especial de um tom reconfortante, não um marrom qualquer, não, era um tom todo especial de marrom, trazia inquietude e ao mesmo tempo parecia a terra fértil de rio aquela terra gostosa da margem que quando nós andamos afunda e massageia a planta dos nossos pés provocando ondas de carinho, que nos segura, refresca, alivia...

Após enterrar meu companheiro, no alto da serra onde os índios tinham levado-me para mostrar-me a imensidão verde da terra e o azul do mar e diante de tão grandes vastidões abro ao acaso e efetuo a leitura da bíblia: “O demônio levou-o em seguida a um alto monte e mostrou-lhe num só momento todos os reinos da terra, e disse-lhe: Dar-te-ei todo este poder e a glória desses reinos, porque me foram dados, e dou-os a quem quero. Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu. Jesus disse-lhe: Está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e a ele só servirás (Dt 6,13).” Era um sinal ele estava certo que aquele era um sinal ele deveria fundar ali uma cidade, na borda daquele imensidão verde daquele campo, chamá-la-ia de Santo André da Borda do Campo pois como o apóstolo tinha sido o primeiro a ser chamado ele também seria o primeiro a pregar para aqueles gentios e assim ele João Ramalho pagaria por todos os seus pecados...

Hafiz, Hafiz, Hafiz, meu jovem vamos acorde temos muita coisa a fazer, e você dormindo não é possível vamos nos preparar, pois iremos partir para a Etiópia precisamos ir mais fundo nesse mistério de Preste João e parece que sua última aparição ocorreu ali naquele país, por sorte, o professor Aziz contatou um guia conhecido, o senhor Bonono, para nos ajudar e eu de minha parte fiz o pedido da minha licença especial para a Universidade de Coimbra, assim teremos seis meses para pesquisarmos em campo, todos os acontecimentos, seria interessante você entrar em contato com seu superior para podermos empreender nossa viagem.

Concordei meneando a cabeça estava ainda confuso tentando recapitular aqueles sonhos confusos, nos quais eu aparecia como personagem ou como observador e assim preparei-me para deixar o Egito e rumar para a Etiópia, já tinha viajado mais que todas as gerações da minha família em apenas quinze dias o que será que o destino ainda reservava-me despedi-me afetuosamente de Dona Teresa que tão bem acolheu-nos e também do Professor Aziz um grande conhecedor dos pergaminhos e textos antigos...

quinta-feira, 24 de junho de 2010

A Lenda de Preste João

Se abriram as cortinas e subitamente vimos o Preste João, ricamente adornado sobre uma plataforma de seis degraus. Tinha em sua cabeça uma grande coroa de ouro e prata. Uma de suas mãos apoiava uma cruz de prata (...) À sua direita, um pajem apoiava uma cruz de prata bordada em forma de pétalas (...) O Preste João usava um belo vestido de seda com bordados de ouro e prata e uma camisa de seda com mangas largas. Era uma bela vestimenta, semelhante a uma batina de um bispo, e ia de seus joelhos até o chão (...) Sua postura e seus modos são inteiramente dignos do poderoso personagem que é.
(Francisco Alves, embaixador português enviado à Etiópia, século XVI)


Em meu laboratório começamos a inspecionar os pergaminhos que estavam em ótimo estado de conservação pegando um ao acaso, percebo que se trata da história de Portugal e incentivo meu amigo: — Esse pergaminho narra as “Sete Partidas” do infante D. Pedro, o que senhor sabe sobre ele meu caro colega Augusto.
— D. Pedro, infante de Portugal , 1º duque de Coimbra, nascido em 1392 faleceu em 20 de Maio de 1449 foi um príncipe da Dinastia de Avis, filho do rei D. João I e de D. Filipa de Lencastre. Entre 1439 e 1448 foi regente de Portugal. Devido às suas viagens ao estrangeiro, ficou conhecido como o Infante das Sete partidas. Tendo recebido nelas o feudo de Treviso, pelo imperador Segismundo da Hungria, e investido cavaleiro da Ordem da Jarreteira pelo seu primo Henrique IV de Inglaterra. As notícias, em forma de lenda, do Preste João chegavam à Europa oralmente através de embaixadores, peregrinos e mercadores, sendo posteriormente confirmadas pelo infante D. Pedro, que viajara "pelas sete partidas do mundo".
— Não consigo compreender o que vem a ser estas sete partidas pelo mundo o senhor poderia esclarecer melhor professor? – pergunta-me Hafiz e por minha vez esclareço-lhe:
— A história começa assim AS SETE PARTIDAS DO MUNDO foi um empreendimento que o Infante D. Pedro homem estudado gostaria de saber e sentir o que se passa no resto do mundo e decide viajar. Não só para visitar e conhecer as principais Cortes da Europa, mas também a Terra Santa e, se possível, o lendário Reino do Preste João, com a anuência do pai, dinheiro e cartas de crédito sobre banqueiros italianos, resolve partir de Portugal. Olho para meu colega Augusto que pede a palavra:
— Em 1418 o Infante D. Pedro parte de Lisboa e acompanhado por, cavaleiros andantes, parte rumo ao desconhecido, começa sua jornada pelo reino de Castela e em Valhadolid encontra-se com o rei de Castela, seu primo, o qual lhe cede alguns intérpretes de línguas orientais.
De Valhadoli parte para a Hungria, e o imperador Segismundo o acolhe calorosamente, com ele o infante, enfrenta os hereges hussitas da Boémia e, durante cinco anos, envolve-se em batalhas na Alemanha, recebendo o feudo de Treviso, no final da guerra. Em 1424 deixa Treviso e ruma para Chipre e de lá para a Terra Santa, refazendo o itinerário dos antigos cruzados... – retomo a palavra e prossigo:
— Depois parte ele para a ilha de Patmos e é recebido faustosamente por Amurat II, Sultão da Turquia. Percebe que a expansão otomana irá converter-se num grave problema para a Europa. Parte para Constantinopla e dali navega até ao norte de África, Alexandria e Cairo. Visita à Palestina e a Terra Santa. Regressa ao Cairo e em 1425 embarca para o sul da Europa. Alcança Paris donde passa para a Corte da Dinamarca e dali para a Inglaterra onde o seu primo Henrique IV o investe na Ordem da Jarreteira.
Viaja para Ostende, em Flandres, onde combina o casamento da sua irmã Isabel com Filipe, o Bom. Demora-se dois anos na Corte flamenga. Exerce influências para intensificar o comércio luso-flamengo. É de Bruges que, em 1427, escreve a D. Duarte, seu irmão, carta que há de ficar famosa.
Em 1428 retorna à Hungria e, como duque de Treviso, segue para Veneza, recebe múltiplos presentes, entre as quais um exemplar do Livro de Marco Polo que entregará mais tarde ao Infante D. Henrique. Ainda em Veneza compra um mapa-múndi com o traçado das vias comerciais entre o Oriente e a cristandade. Mapa-múndi que também oferecerá a seu irmão Henrique. De Veneza avança para Roma onde é recebido pelo Papa Martinho V.
Dez anos demorou a viagem do Infante D. Pedro pelas “Sete Partidas do Mundo”. Muito viu e assimilou, e muito ficou sabendo.

Agora para aclarar nossa percepção sobre o Preste João ninguém melhor que nosso querido e estimado colega Professor Aziz, por favor, conte-nos sobre a lenda do Preste João, caro colega:
— O Preste João foi um lendário soberano cristão do Oriente que detinha funções de patriarca e rei, correspondendo, na verdade, ao Imperador da Etiópia. "Preste" é uma corruptela do francês Prêtre, ou seja, padre... Diz-se que era um homem virtuoso e um governante generoso, seu reino condensam-se o reino cristão-monofisita da Abissínia e os cristãos nestorianos da Ásia Central. Diz-se também que era descendente de Baltasar, um dos Três Reis Magos. Como notícias palpáveis desse império cristão eram escassas, dilatava-se a fantasia em redor do seu reino: falava-se de monstros vários (entre os quais os homens com cabeça de cão), paisagens edénicas, etc. O Inferno e o Paraíso num só território.

O ritmo monótono da voz a longa viagem a noite mal dormida, em um local estranho começo a devanear sento e apóio-me para melhor escutar o professor Aziz, porém o sono toma conta de meu corpo – Hafiz não seria melhor ires lavar o rosto... — Não está tudo bem – respondo num ímpeto porém o sono é mais forte e de repente... Vejo-me em um tempo distante, em uma terra estranha, alguém discursa em uma língua estrangeira, que não sei como já conheço:

Mas tu, Belém-Efrata, tão pequena entre os clãs de Judá, é de ti que sairá para mim aquele que é chamado a governar Israel. Suas origens remontam aos tempos antigos, aos dias do longínquo passado. Por isso, (Deus) os deixará, até o tempo em que der à luz aquela que há de dar à luz. Então o resto de seus irmãos voltará para junto dos filhos de Israel. Ele se levantará para (os) apascentar, com o poder do Senhor, com a majestade do nome do Senhor, seu Deus. Os seus viverão em segurança, porque ele será exaltado até os confins da terra.
Meu pai viu a grande estrela, e caminhou até ela, encontrando o verbo em carne... Pois Baltasar, era esse seu nome, era mouro, de barba cerrada e partira do Golfo Pérsico, na Arábia Feliz. Em seu caminho encontrou com: Gaspar e Melquior; Gaspar significa “Aquele que vai inspecionar”, Melquior quer dizer: “Meu Rei é Luz”, e Baltasar se traduz por “Deus manifesta o Rei”.
Eles representavam os reis de todo o mundo, e as três raças humanas existentes. Assim, Melquior primeiro entregou-lhe ouro em reconhecimento da realeza; Gaspar, incenso em reconhecimento da divindade; e meu pai, mirra em reconhecimento da humanidade.
Antigamente, o ouro era presente para reis, representado o poder material; o líbano (incenso) para um sacerdote, representando a espiritualidade; e a mirra, para um profeta, a mirra era usada para embalsamar corpos e, simbolicamente, representava a imortalidade.
Abençoado fui em ser filho de meu pai e herdar este reino maravilhoso, com um exército imenso: minha milícia levava “treze grandes e altas cruzes, feitas de ouro e de pedras preciosas (...) e a cada uma delas seguem dez mil soldados e cem mil peões armados”. Com este poderoso exército, conquistei Ectabana, capital persa, dirigindo-me para o norte, e então regressando a meu país.
Amaldiçoado fui em enviar uma carta narrando as principais maravilhas de meu reino para ao imperador bizantino Manuel I Comneno, esta carta foi posteriormente recuperada pelo bispo Oto de Freising. O bispo na corte de Frederico I, o Barba-Ruiva, enviou ao papa e ao próprio Frederico I. Criando uma febre do ouro para meu reino.
Nesta carta descrevia: meu palácio que era ricamente decorado. Teto de cedro, cobertura de ébano, em seu cume dois pomos de ouro, portas de sardônica, janelas de cristal, mesas de ouro e ametista com colunas de marfim. Além disso, existiam seres fantásticos: “bois selvagens, sagitários, homens selvagens, homens com cornos, faunos, sátiros e mulheres da mesma raça, pigmeus, cinocéfalos, gigantes, cuja altura é de quarenta côvados, monóculos, ciclopes e uma ave que chamam fénix e quase todo o género de animais que existem debaixo do céu.”
Além disso, narro o fato de possuir a almejada Fonte da Juventude, melhor do que a pedra filosofal dos alquimistas, pois sempre tinha eu um aspecto jovem, (apesar de ter então 562 anos de idade) porque banhava-se na própria Fonte da Juventude. A carta situa a Fonte num bosque, no sopé do monte Olimpo, não muito longe do Paraíso “de onde Adão foi expulso”: “Se alguém beber em jejum três vezes dessa fonte, a partir desse dia nunca mais sofrerá de qualquer doença e será sempre, enquanto viver, como se tivesse trinta e dois anos de idade”. A notícia dessa carta que contava as maravilhas de meu reino espalhou-se pela Europa. Até o século XV foram feitas várias traduções e cópias. Suas diferentes versões descrevem as maravilhas de meu reino. Jóias corriam nos rios, o meu palácio abrigava trinta mil pessoas à mesa, todos os dias “ não contando com os forasteiros que chegam ou partem. E todos eles recebem em cada dia, da nossa câmara, ajudas de custo quer em cavalos quer em outras espécies”
Em meu reino estava também a Árvore da Vida, que fazia fronteira com o Paraíso, a apenas um dia de distância. (Mas ela é guardada por uma serpente duas vezes maior que um cavalo, tendo ainda nove cabeças e duas asas. Vigilante o tempo todo, ela dormia apenas no dia de São João Batista, quando se podia recolher o bálsamo que a árvore produz e do qual se faz o crisma, o óleo sagrado) – retorno a realidade sentindo o cheiro de mirra e uma poça de saliva nos meus pés, refaço-me o mais depressa possível, enquanto isso o professor Aziz continua sua digressão:
— Mas qual o interesse do bispo Oto de Freising para divulgar um rei lendário, um reino fantástico e falsificar esta carta? Devemos buscar no contexto político germânico da época as causas da atitude do bispo alemão. Em primeiro lugar, as lutas internas no Império entre guelfos e gibelinos — o professor estava empolgado parecia um profeta pregando no deserto – guelfo — de Welf, ou Guelf, era o tio do duque Henrique da Baviera, que se opôs à eleição de Conrado III da Suábia, o primeiro da dinastia dos Hohenstaufen; gibelino — de Waiblingen, aldeia pertencente aos Hohenstaufen. Mais tarde, na Itália, com as campanhas de Frederico contra a Liga Lombarda, guelfo passou a designar os partidários do papa, e gibelino os partidários do imperador. – a carta então era por isso que tinha sonhado com a mesma...
— Mas veja bem meu caro colega Aziz outra questão importante era a disputa entre Frederico e o papa Alexandre III, o poder temporal versus o poder espiritual — que tinha suas origens na Questão das Investiduras — uma grande crise que assolou as relações entre o Império e o Papado, e, na verdade, entre a Igreja e as Monarquias européias, no período de 1075 a 1122.
Ora vejamos a história de Portugal neste período, após muitos fracassos militares de D. Raimundo contra os mouros, Afonso VI decidiu em 1096 doar o governo das terras mais a sul do Condado da Galiza, ao Conde D. Henrique, seu primo, fundando assim o Condado Portucalense, o nome do condado vem do topónimo Portucale, com o qual desde o século IX se designava uma cidade situada perto da foz do Douro, designada de Portus Cale, "Porto de Cale", que se julga ser um nome híbrido formado por um termo latino (Portus, "porto") e outro grego (καλός, transl. kalós, "belo"), donde qualquer coisa como "Porto Belo"; Outra explicação é de que o nome deriva dos povos de cultura castreja que habitariam a área de Cale nos tempos pré-romanos - os Callaeci. Uma explicação alternativa é a de que o nome deriva da deusa venerada pela tribo e que poderia históricamente relacionar-se com a palavra Cailleach (definida como "deusa ancestral"), na Irlanda, numa invasão celta proveniente da Galécia e que teria nesses primórdios invadido a actual Irlanda. Uma outra teoria afirma que a palavra cale ou cala, seria celta e significava "porto", uma "enseada" ou "abrigo", e implicava a existência de um porto celta mais antigo..
Com o governo do Conde D. Henrique, o Condado Portucalense conheceu a estabilidade política e a luta pela independência, apesar de nunca ter conseguido alcançá-la, somente, após sua morte, quando seu filho D. Afonso Henriques subiu ao poder, Portugal conseguiu a sua independência com a assinatura em 1143 do Tratado de Zamora, ao mesmo tempo que conquistou localidades importantes como Santarém, Lisboa, Palmela e Évora dos mouros. A Igreja católica tinha enorme interesse em divulgar a fé pelo mundo e projetava junto a Portugal a expansão marítima, o relato de novas e paradisíacas terras chamavam a atenção do Papa que mostraria o Paraíso na Terra, dessa forma, a igreja patrocinou as grandes navegações, impulsionando a fé através da companhia de Jesus, ou os jesuítas, entende meu caro Hafiz, sua ordem tinha um amplo interesse em colonizar, espalhar e mapear a fé católica pela vastidão do mundo.
O papa enviou para essa missão Cristóvão Colombo, cujo nome significa o pombo portador de Cristo, praticamente espírito santo, para que conforme estava escrito na Bíblia em Gênesis, vamos procurar, aqui no capítulo seis, versículo seis ao onze:
No fim de quarenta dias, abriu Noé a janela que tinha feito na arca e deixou sair um corvo, o qual saindo, voava de um lado para outro, até que aparecesse a terra seca. Soltou também uma pomba, para ver se as águas teriam já diminuído na face da terra. A pomba, porém, não encontrando onde pousar, voltou para junto dele na arca, porque havia ainda água na face da terra. Noé estendeu a mão, e tendo-a tomado, recolheu-a na arca. Esperou mais sete dias, e soltou de novo a pomba fora da arca. E eis que pela tarde ela voltou, trazendo no bico uma folha verde de oliveira. Assim Noé compreendeu que as águas tinham baixado sobre a terra.
Em vez de um ramo de oliveira ele retornaria com algo que mostraria que não apenas água havia a oeste, na direção que o sol se punha, mas sim terras virgens, que poderiam ser as portadoras, da Fonte da Juventude, da Árvore da Vida, do Paraíso Terrestre e do Eldorado, sim todas as lendas poderiam ser concretizadas nestas terras ainda por serem desbravadas.
— Meu caro amigo Augusto antes que passemos da Ásia para a América vamos para a África, é necessário mostrar por que o mito do Preste João mudou geograficamente de posição. Considero a narrativa de Marco Polo essencial para delimitar esse marco.
No seu livro, O Livro das Maravilhas, Marco Polo confirma a existência de Preste João na Ásia. Chegando a Karakorum, “cidade de três milhas de circunferência” na planície de Tangut, Polo relata que o povo que vivia nessa região, os tártaros, não tinham rei, mas pagavam tributo a um senhor, a um Kã, que era o próprio Preste João, filho do rei mago Baltasar. Os tártaros davam-lhe dez cabeças de gado, o dízimo, o povo multiplicava-se e Preste João decidiu dividi-lo por várias regiões, e enviar, para governá-las, alguns dos seus nobres.
Compreenda jovem Hafiz, Preste João governava um império de muitos povos: Seus súditos eram abençoados por terem um rei tão sábio, maravilhoso e justo, a semelhança com Salomão é clara, vejamos o que diz a Bíblia:
Deus deu a Salomão a sabedoria, uma inteligência penetrante e um espírito de uma visão tão vasta como as areias que estão à beira do mar. Sua sabedoria excedia a de todos os orientais e a de todo o Egito. Ele era o mais sábio de todos os homens, mais sábio do que Etã, o ezraíta, do que Hemã, Chacol e Dorda, filhos de Maol; e sua fama espalhou-se por todos os povos vizinhos. Pronunciou três mil sentenças e compôs mil e cinco poemas. Falou das árvores, desde o cedro do Líbano até hissopo que brota dos muros; falou dos animais, das aves, dos répteis e dos peixes. De todos os povos vinham pessoas ouvir a sabedoria de Salomão, da parte de todos os reis da terra que tinham ouvido falar de sua sabedoria.”
(REIS, LIVRO I, Capítulo: 4, 19:28).
Preste João proclamava-se imperador de setenta e dois reinos na Ásia — o número setenta e dois era uma analogia a Isidoro de Sevilha , que escreveu a obra enciclopédica Etymologiarum Libri XX, compendiando vinte livros com os conhecimentos da época sobre artes e ciências, obra monumental que organizou todo o conhecimento da época como um autêntico banco de dados.
“De fato, segundo a autoridade de Isidoro de Sevilha, o mundo é formado por 72 povos (44: IX, 2, 2), e Preste João afirma na sua carta governar 72 províncias, cada uma delas tendo um rei que lhe é tributário”.
Os tártaros se recusaram a acatar-lhe, fugiram para o deserto e declararam Gêngis o novo Kã, ele enviou emissários a Preste João, pedindo-lhe sua filha como esposa, na página 93 do Livro das Maravilhas, Marco Pólo relata que Preste João, ofendido, expulsou os mensageiros, dizendo-lhes: “Dizei ao vosso povo que o condeno à morte por ser traidor e desleal, e por ter a audácia de pedir a filha do seu senhor para mulher, e que eu o farei morrer de morte afrontosa”
A batalha estendeu-se durante dois dias, as duas hostes inimigas bateram-se duramente, foi a maior e mais encarniçada luta que a humanidade jamais viu. Houve grandes perdas, duma parte e doutra, mas afinal venceu Gêngis Ka e morreu Preste João, veja bem na página 95 do Livro das Maravilhas, lê-se: “Contei-vos como os tártaros elegeram o seu primeiro grã-senhor e como venceram Prestes João.”
Com um distanciamento frio, objetivo, sem dor, e sem lamentação, digno da melhor qualidade de texto jornalístico assim Marco Polo narrou a morte do mito, última esperança do cristianismo na luta contra o Islã. E por quê?
Marco Polo é um homem que testemunha a transição do antigo feudalismo para o início do capitalismo, percebe-se o embrião da balança comercial que penderia para o Oriente durante muitos séculos sendo superada pelo Ocidente apenas com a Revolução Industrial, Marco Polo é um marco, perdoem-me o trocadilho, mas ele é o elo entre o antigo e o atual, o novo num tempo ainda antigo, ele é colocado na curva dos acontecimentos, na virada de um modo de agir de pensar e de colocar-se socialmente, sua visão é dianteira, direcionada para a troca, o comércio, a globalização. O mito faz parte do passado, é intransigente e unilateral. Marco Polo representa a multiplicidade, os dois mundos interagindo: é a alavanca para o desenvolvimento, afinal é veneziano, cosmopolita, renascentista, ele consegue até negociar com aqueles que mataram um grande bastião católico na Ásia, mas como iremos perceber o mito apenas é transferido da Ásia para África, pois quando Marco Polo “mata” o mito, está contribuindo para essa transposição geográfica: na verdade, as pessoas ainda desejavam que Preste João existisse, o Ocidente ainda o tinha como sinal paradigmático para as cruzadas.
A Europa ainda estava sendo pressionada militarmente pelo Islão, principalmente em suas áreas limítrofes: o Império Bizantino e a Península Ibérica (que então estava no auge de seu processo de Reconquista). Preste João ainda era a esperança da abertura de uma segunda frente, provavelmente por isso a sua transferência geográfica para a África, o mito no século XIV renasce na Etiópia, Segundo Guillaume Mollat : primeiro a situar seu reino “ao sul do Egito” foi o cartógrafo genovês Angelino Dulcert. O desconhecimento europeu em relação ao reino etíope, devido ao não-mapeamento das fontes do Nilo (porque por terra havia o Deserto do Sudão e o Maciço Etíope) também criava um clima propício ao desenvolvimento de lendas maravilhosas.
Conta uma dessas lendas que Makeda era a rainha de Sabá (Etiópia). Sabá seria o Reino de Aksum, mais tarde o Império da Etiópia, que ocupava o sudoeste da península arábica, de qualquer modo, maravilhada com as preciosidades trazidas do reino de Salomão por um mercador, a rainha de Sabá resolveu fazer uma visita pessoalmente:
A rainha de Sabá, tendo ouvido falar de Salomão e da glória do Senhor, veio prová-lo com enigmas. Chegou a Jerusalém com uma numerosa comitiva, com camelos carregados de aromas, e uma grande quantidade de ouro e pedras preciosas. Apresentou-se diante do rei Salomão e disse-lhe tudo o que tinha no espírito. A tudo respondeu o rei. Nenhuma de suas perguntas lhe pareceu obscura, e deu solução a todas. Quando a rainha de Sabá viu toda a sabedoria de Salomão, a casa que ele tinha feito, os manjares de sua mesa, os apartamentos de seus servos, as habitações e uniformes de seus oficiais, os copeiros do rei e os holocaustos que ele oferecia no templo do Senhor, ficou estupefata, e disse ao rei: É bem verdade o que ouvi a teu respeito e de tua sabedoria, na minha terra. Eu não quis acreditar no que me diziam, antes de vir aqui e ver com os meus próprios olhos. Mas eis que não contavam nem a metade: tua sabedoria e tua opulência são muito maiores do que a fama que havia chegado até mim. Felizes os teus homens, felizes os teus servos que estão sempre contigo e ouvem a tua sabedoria! Bendito seja o Senhor, teu Deus, a quem aprouve colocar-te sobre o trono de Israel. Porque o Senhor amou Israel para sempre, por isso constituiu-te rei para governares com justiça e eqüidade.
(REIS, LIVRO I, Capítulo: 10, 1:9).
Mais adiante a passagem bíblica é deveras reveladora observem: “O rei Salomão deu à rainha de Sabá tudo o que ela desejou e pediu, além dos presentes que ele mesmo lhe fez com real liberalidade. E a rainha retomou o caminho de volta com a sua comitiva.” (REIS, LIVRO I, Capítulo: 10, 13) permite uma aproximação com a tradição apócrifa em que sou especialista, pois estou estudando os pergaminhos de Nag Hamadi : Makeda seria seduzida por Salomão, e geraria um filho de nome Menelike, que será sagrado rei por Salomão “e voltará com um grupo de jovens notáveis à Etiópia, não sem terem subtraído a arca da Santa Aliança, para a honrarem em África”, assim se inicia uma dinastia salomônica na Etiópia, conferindo-lhe uma condição mítica que desembocará na lenda de Preste João no século XIV.
No século IV o reino etíope de Aksum se converteu ao cristianismo pelas mãos de Fromentius, sagrado monge sírio bispo e chefe espiritual da Etiópia por Santo Atanásio, patriarca de Alexandria, Atanásio havia afirmado que a humanidade de Cristo estava absorvida na sua divindade — proposição de unidade da natureza de Cristo (monofisismo) — e foi condenado pelo Concílio de Calcedônia (451). A Igreja etíope é, portanto, herética e cismática, seguindo o rito litúrgico e o calendário copta egípcio, além de certos costumes sincréticos, como, por exemplo, “danças arrebatadas, tambores, sacrifícios de cabras; interdição de entrar na igreja no dia seguinte a relações sexuais e a observação do sábado em vez do domingo resultam da prática judaica”- encerra triunfalmente o professor Aziz.
Prosseguindo com a história de Portugal no tempo do rei Lebna Denguel (Incenso da Virgem) (1508-1540), a regente Helena, uma princesa muçulmana convertida, mandou um mensageiro a Portugal, Mateo, o Armênio, durante uma série de escaramuças do reino etíope com as potências islâmicas da costa. Uma embaixada portuguesa foi enviada em 1520, no entanto, parece que os portugueses foram acolhidos sem entusiasmo, pois Lebna Denguel teria ficado decepcionado com os poucos presentes provenientes da Europa, e zombara quando lhe mostraram num mapa o pequeno Portugal em comparação com seu reino (cuja extensão era exagerada por causa das técnicas de representação cartográfica), Lebna Denguel encheu-se de orgulho e ficou consternado com o fato dos reinos cristãos recorrerem às armas. De qualquer modo, aceitou ceder Massawa como base naval a Portugal e prometeu a sua aliança contra os Muçulmanos. Por sua parte, pediu artesãos e médicos.
Na embaixada portuguesa encontrava-se Francisco Alves, padre e capelão. Devemos a ele a primeira descrição do Preste João. Ele foi o primeiro cristão a "ver", e, por consegüinte, "matar" o mito: Se abriram as cortinas e subitamente vimos o Preste João, ricamente adornado sobre uma plataforma de seis degraus. Tinha em sua cabeça uma grande coroa de ouro e prata. Uma de suas mãos apoiava uma cruz de prata (...) À sua direita, um pajem apoiava uma cruz de prata bordada em forma de pétalas (...) O Preste João usava um belo vestido de seda com bordados de ouro e prata e uma camisa de seda com mangas largas. Era uma bela vestimenta, semelhante a uma batina de um bispo, e ia de seus joelhos até o chão (...) Sua postura e seus modos são inteiramente dignos do poderoso personagem que é...
Entreolham-se os professores realizados por tão vasta e penetrante explanação e riem-se do pobre Hafiz que se encontra totalmente entregue a Morpheus...

quinta-feira, 10 de junho de 2010

A Carta

A vida humana é como um rio que corre sem cessar, uma corrente de água que não pode parar, que não se detém jamais. A ação é necessária sempre. Tudo está em movimento permanente e o homem tem que seguir essa lei natural, a lei do movimento. A personalidade é uma forma de movimento. O ser humano, em funcionamento normal, está sempre avançando. Há uma contínua luta pela existência e essa luta demonstra que há dentro de cada indíviduo algo que o impulsiona a manter-se em luta: sua necessidade de ação.

Uma carta de meu ranzinza colega de trabalho, o Augusto Pombal, como bom e típico português, avisa praticamente em cima do evento, porém vamos desculpá-lo parece que a viagem até aqui não foi planejada bem vejamos o que diz a carta:

21 de Março de 2004.
Caro Aziz Tel'Ab Hussein,

Estou reportando-lhe que chegarei ao Aeroporto Internacional às 22h de vinte e cinco de março de 2004, quinta-feira, espero contar com vossa ajuda tanto para conhecer tão vasto, e maravilhoso local, Cairo, mas também avaliar a autenticidade de alguns pergaminhos que carrego.

Muito obrigado,

Professor Doutor Augusto Pombal.

Sempre bonachão meu caro colega bem irei até o aeroporto e virei em que posso ser útil, com meus olhos cansados, ouvidos moucos, pele de crocodilo, o olfato já em estado precário, mas com um paladar sem igual, a experiência revela-se muito produtiva nessas horas.

Que dia, o cansaço toma conta do meu corpo, mas tenho que continuar não posso entregar-me, não agora, em que meu amigo depende de mim. Como estará aquele meu caro colega, tenho tanto trabalho e ele traz-me mais, bem parece que são importantes, mas não mais importantes que os pergaminhos que agora estudo os Manuscritos de Nag Hammadi, contudo não vou tirar-lhe a excitação do achado.

Esse trânsito maluco onde iremos parar? Acredito que existam mais carros do que pessoas atualmente, a questão é como iremos enfrentar este problema, estou já na terceira volta no aeroporto e não consegui entrar em nenhum estacionamento... O que aquele homem está apontando, será que quer... Não ele está apontando uma miragem, não é possível uma vaga, um oásis, não consigo acreditar. Muito obrigado, meu caro pode deixar que na volta irei recompensá-lo. Ainda bem que essa vaga surgiu, estou quase atrasado chegarei no horário sem nenhuma folga, espero que o vôo tenha atrasado, e não adiantado:

— Por favor, vôo 357 da TAP, já chegou. – perguntei para a moça do balcão de informações.

— Deixe-me ver, o vôo está com um atraso de vinte minutos, o senhor pode aguardar no portão dois de desembarque. – aliviado pude esperá-lo com um pouco de folga, ele estaria enjoado, com raiva que suas bagagens se extraviariam e o pior seria reclamar que ficou esperando-me por muito tempo, preferia eu esperar a ouvi-lo reclamar.

Quanto tempo havia se passado desde sua última visita, já não conseguia recordar, tantas realizações, mas o tempo parecia transcorrer mais rápido do que outrora, súbito ali estava meu antigo colega, com um personagem singular, uma figura parecida com um jesuíta, caminhei em sua direção:

— Como vai, meu caro não mudas hein? Sempre aventureiro e agora carrega consigo discípulos, tornou-se guru espiritual por acaso, hein meu velho. – emocionado ele narrou-me suas aventuras e caminhamos para o carro...

Chegando ao carro abri o porta-malas e acondicionei cuidadosamente a bagagem de meu estimado colega e depois os acomodei no carro, lembrei-me do flanelinha salvador e entreguei-lhe o dinheiro, ele muito feliz agradeceu-me, sua felicidade equiparava-se a minha, dei-me por satisfeito rumamos para o hotel Pirâmides do Egito, um belo e sugestivo nome de criação portuguesa...

Teresa a dona do hotel estava nos esperando abraçou-nos e com sua típica fala portuguesa encaminhou-nos para o melhor quarto do hotel, segundo ela, chegamos ao quarto trinta e dois, uma antiga porta com uma fechadura mais antiga, Jorge o empregado estava com a chave e com as malas por um momento ele atrapalhou-se, mas recuperando a compostura, abriu e revelou-nos um quarto muito bem limpo com duas camas de solteiro, um guarda-roupa com cabides, um lavabo e um banheiro com chuveiro (um luxo, pois os outros hóspedes utilizavam-se de banheiros externos para tomar banho).
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Despedi-me dos dois prometendo regressar no dia seguinte às oito e meia para o café, mais um abraço de Teresa, deposito algumas moedas na mão de Jorge e parto feliz para a casa com a sensação de missão cumprida, tinha insistido com meu colega para hospedar-se em meu humilde lar, contudo ele dissera que já incomodaria-me muito e não era justo que ficasse também em minha residência, Pombal e suas manias...

— Dormiu bem. - pergunto para meu estimado colega.

— Esplendorosamente meu caro Aziz, pois as poltronas do avião eram muito desconfortáveis, no entanto a cama e os travesseiros do hotel são divinos, o novo companheiro do professor concorda meneando a cabeça, após o café meu amigo muito excitado mostra-me os pergaminhos, realmente, parecem muito antigos e reveladores de um mistério inimaginável, peço-lhes que me acompanhem ao meu laboratório para melhor inspecionarmos aquele material...

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Poço

19. Seus servos cavaram outro poço no vale, e encontraram ali uma fonte de água viva. 20. Mas os pastores de Gerara começaram a disputar com os pastores de Isaac: “Esta água é nossa”, diziam eles. Isaac chamou então a esse poço Esec (Poço de Discussão), porque lho tinham contestado. 21. Abriram seus pastores um segundo poço, mas surgiu uma outra disputa, e por isso pôs-lhe o nome de Sitna (Poço de Reclamação). 22. Partindo em seguida dali, abriu outro poço, sobre o qual não houve mais discussão, e pôs-lhe o nome de Rehobot (Poço de Largueza), “porque agora, disse ele, o Senhor nos pôs ao largo, e prosperaremos na terra.”.

Tinha que sair, todos estavam comentando, era o assunto do dia, tudo tinha começado lá no poço, as mulheres tinham visto ele, e espalharam a notícia. O momento era aquele, era agora, sai, ao abrir à tenda a luz me cega por instantes, a multidão caminha, uma massa uniforme, um novo ser, como cardume, assim todos caminham, uma única direção...

Ele não estava lá à multidão toma novo rumo, e continua seu trajeto, nada pode deter aquele monstro gigantesco, que aumenta, a cada momento, caminhamos, subitamente, ele aparece, o monstro vira, prepara o bote, aquele ser indefeso, não tem chance, contudo a multidão estaca e esperam as palavras daquele que parece um pai.

Sua barba e cabelo uniam-se como a juba de um imponente leão, quando começava a falar agigantava-se e tocava o céu, ensinamentos fluíram como rios, embalados por sua música, acalentados por suas estórias, ensinados por suas leis e preceitos crescemos como nação e houve a paz, lembro-me perfeitamente, Ele veio do deserto e ao deserto retornou: sozinho, altivo, pacífico, deixou de ser homem, tornou-se mito, virou lenda.

— Neste poço, muito tempo atrás, quando a água ainda fluía, agora é apenas um ponto, na vastidão do deserto, serve para que contemos nossas estórias e lembremos nosso passado, bem meus filhos esta é a lenda do Peregrino, e muitas nações pelo mundo relatam aparições semelhantes.

Assim falava Belaié, a filho das águas, suas narrativas eram verdadeiras vertentes, corredeiras de ciência e humanidade era conhecido por vários epítetos tais como: o sábio, o profeta, o oráculo, o peregrino, o imortal, entre outros. Conhecido contador de lendas do deserto percorrera o mundo inteiro, diziam que de tanto caminhar sua perna ficara torta, outros falavam que era o peso do conhecimento, assim como suas lendas, Belaié também se tornara uma e não era para menos, pois, vivia sempre caminhando pelo deserto e de repente aparecia, alegrava as caravanas cansadas, os caminhantes desesperados, por uma noite permanecia, encantando todos, sobretudo as crianças com quem tinha um vínculo muito especial, suas aparições começaram a tornar-se sinal de benfazejo e milagre.

—Também foi aqui que deixou seu símbolo. – mostrou-nos uma pedra retangular amarelada que tinha uma rede mal traçada. – fiquei imaginando o que representaria aquele símbolo, perguntei a Belaié, ele apenas sorriu...

—Um importante homem disse: “Se alguém vem a mim e não odeia seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs e até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo.” Com esses discípulos conviveu, ensinou, foi traído e morreu, ele afirmava que estes discípulos tinham deixado de serem simples pescadores para tornarem-se pescadores de homens, acredito que este símbolo já é uma referência ao que esse homem dizia.

—Tudo está ligado desde o menor até o maior nível, a existência é regida por uma harmonia desconhecida por nós, mas que nos permite viver e existir com outras criações e assim o homem quando começou a compreender um pouco dessa vastidão que o cercava, percebeu como aquele conhecimento era precioso. No começo a informação foi mantida por estórias como a que contei, porém como o número de pessoas aumentou as estórias também se modificaram, surgiu um instrumento surpreendente, a escrita, e assim as estórias preservaram-se.

Tínhamos uma tradição de guardar nossas leis, costumes e lendas em uma caixa e enterrá-la em um ponto do deserto conhecido apenas por três pessoas: o ancião, o homem mais antigo entre nós; o líder, o atual chefe do grupo e um convidado, podia ser alguém que praticou um ato heróico. Era a isso que Belaié estava se referindo, chegara a época de retirar as “águas que não tem peixe”, assim eram conhecidos aqueles pergaminhos, pois eles alimentavam a alma e não o corpo.

Após escutarmos mais uma vez nossas leis e costumes, aquilo que já conhecíamos tão bem, afinal, tínhamos nascidos no deserto e sem dúvida morreríamos nele, partiram os três, Selasié, o velho; Menelique, o líder e Belaié o convidado. Saíam com um profundo tom marcial Selasié a frente mostrando o caminho e Menelique e Belaié atrás conduzindo a caixa, parecia o enterro de alguém, para nós aquilo tudo era muito chato o que importava mesmo eram as histórias de Belaié.

Ele nos olhava e dizia que tudo que contava, estava ali naquela caixa, mas para nós não podia ser como as palavras escritas pareciam mortas e por isso eram enterradas, enquanto as que Belaié pronunciava, essas ganhavam vida e nos transportavam para outras realidades, não podia um morto ser igual um vivo e só nesse momento não acreditávamos nele.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Gênesis

Alguns anos depois de os demônios serem expulsos desta terra, apareceu nestas províncias e reinos um homem barbudo, estatura mediana cabelos longos, usando uma túnica comprida e dizem que era mais velho do que moço. Tinha cabelos brancos, era magro, andava com um cajado e ensinava o povo com grande amor, chamando a todos de filhos e filhas. Todavia, nem sempre era ouvido ou obedecido por todas as pessoas, e quando caminhou pelas províncias realizou vários milagres: curou os doentes, tocando-os com as mãos; não trazia pertences nem possuía rebanhos de animais.

O pajé dá uma pausa, novamente estamos ao redor da fogueira, como ele conseguia aqueles efeitos, impressionava, intimidava, encantava, começamos um coro para que ele retorne a narrativa e assim ele nos encara novamente um a um, pigarreia, sorri, olha as estrelas e prossegue...

Alguns conseguiram escapar para Hanan Pacha , outros foram para Uku Pacha, e os que restaram ficaram sob os caprichos de Nguruvilú, que como não conhecia a beleza da criação começou apenas a fazer nossos irmãos sofrer e a esquecer que um dia tinham sido unos, começou paralisando alguns e os prendendo a terra, eles não poderiam mover-se por si e alimentar-se-iam de luz, feito isso transformou outros para que comessem esses primeiros e não satisfeita criou com o que restou seres mais abomináveis ainda, que se nutriam dos que se alimentavam de seus antigos irmãos estes últimos seres não tinham nenhuma piedade e eram extremamente cruéis.

Durante muitas eras nós os sobreviventes viajamos por Hanan Pacha sem destino, não sabíamos o que fazer em nossas andanças descobrimos diversos segredos, alguns de nossos irmãos também se perderam ou resolveram compartilhar suas existências com outros seres dos confins do Hanan Pacha.

Mas a fome insaciável do tempo que não revelou o início mordeu-se e revelou o fim, Viracocha percebeu que não tinha sido justo com Supay e suas criaturas, condenou Nguruvilú assim como condenado tinha Supay, no lugar onde a raposa rastejante foi lançada, surgiu uma grande rocha próxima da prisão de Supay conhecida como BURRINGURRAH, dessas montanhas pariu-se uma nova criatura, o homem.

Viracocha usou suas medidas para o homem, que não teria formas desproporcionais como as antigas criaturas que já tinham antes caminhado, os seres que ficavam parados e comiam luz passaram a ser os maiores, e abaixo deles ficaram todas as outras criaturas, a mente foi dada ao homem para que ele julgasse e a imaginação seria onde os deuses apresentariam suas provas acerca do mais justo senhor Viracocha ou Nguruvilú. O homem tornou-se dessa forma: réu, acusador e juiz.

Para punir Pacha Mama, Viracocha transformou-a em uma serpente que envolveu todo o conhecido e quando encontrou o fim do infinito, essa criatura começou a devorar o que ela não sabia ser ela mesma, para ser justo Viracocha determinou que o homem e todas as outras criaturas que a partir dali andassem sobre a terra, também sentiriam a maldição de Pacha Mama iriam sempre acabar em autofagia.

Pacha Kamaq, o senhor dos vulcões, refugiou-se com a raposa rastejante, Viracocha condenou-o a permanecer para sempre no interior ardente do planeta.

Dessa maneira, Supay passou a reinar ao lado de Viracocha e o Universo de novo equilibrou-se com a Luz e a Escuridão, Nguruvilú, a raposa rastejante não se conformou e jurou acabar com os homens prometendo transformá-los todos como fez com as antigas criações de Supay, Viracocha permitiu a raposa rastejante, impor seus métodos enquanto Pacha Mama não findar o que iniciou e assim começa a vida da criatura usada para julgar, acusar e sofrer os castigos em nome dos deuses, o homem...

Nós que tínhamos escapados para Hanan Pacha não podíamos mais voltar, criamos uma rota para que o homem na terra pudesse se guiar toda vez, que a luz desaparecesse e a escuridão quisesse tudo retomar, assim surgiu o caminho das estrelas, que leva para terra sem males... E assim vamos todos retornar para nossas casas que amanhã teremos mais estórias. – disse o xamã apagando a fogueira com um feitiço.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Hafiz Miguel Passos

"Allah! Não há mais divindade além d’Ele, Vivente, Subsistente, a Quem jamais alcança a inatividade ou o sono; d’Ele é tudo quanto existe nos céus e na terra. Quem poderá interceder junto a Ele, sem a Sua anuência? Ele conhece tanto o passado como o futuro, e eles (humanos) nada conhecem a Sua ciência, senão o que Ele permite. O Seu Trono abrange os céus e a terra, cuja preservação não O abate, porque é o Ingente, o Altíssimo"
(ALCORÃO)


Sou natural de Bam, uma cidade esquecida no sul do Irã, ela foi construída sobre a antiga fortaleza de Arg-é Bam, uma extensa estrutura feita de adobe que abrigou a Rota da Seda por dois mil anos. A UNESCO até considerou a região como candidata a Patrimônio Mundial da Humanidade, antes do terremoto do ano passado...
Um poderoso terremoto ocorrido no dia 26 de dezembro de 2003 praticamente devastou a cidade, matou quarenta mil pessoas, entre elas minha família sou o único sobrevivente dos Passos, pois todos os outros trinta e seis constituintes faleceram inclusive meu pai e minha mãe, bem como irmãs e irmãos; avôs e avós; tios e tias, mas não estou aqui para lamentar-me como posso assegurar-lhe venho apenas devido à missão que foi me incumbida e que será cumprida.
Esta foto mostra a localização de minha cidade. – ele retira uma foto com uma nitidez impressionante provavelmente de um satélite, observo a insignificância da cidade perante os marcos naturais do relevo:
Ele continua dizendo. — Segundo o centro de pesquisas geológicas americano, o tremor, foi de intensidade aproximada de 6.5 graus na escala Richter, um terremoto dessas proporções é classificado como forte, tendo o poder de destruir regiões em um raio de até cento e oitenta quilômetros em áreas habitadas, tem uma freqüência de um a cada cento e vinte anos, o terremoto destruiu cerca de setenta por cento da cidade segundo estimativa do centro americano, houve um agravante por se tratar de uma cidade histórica era construída de adobe, tijolos de terra crua, água e palha e algumas vezes outras fibras naturais, moldados em fôrmas por processo artesanal ou semi-industrial...
O Irã é um país montanhoso, sujeito a severos terremotos, em uma zona de subducção onde a placa da Arábia afunda abaixo da placa Eurasiana. Esta colisão pressiona as bordas da placa Eurasiana, resultando em terremotos freqüentes e extensas cadeias de montanhas.
Esta imagem que entreguei para o senhor demonstra essa localização, a foto foi tirada pelo satélite Landsat em 01 de outubro de 1999 mostra a região atingida, através dos sensores Enhanced Thematic Mapper Plus.
Aqui tenho o evento registrado pelo sismógrafo de Ankara, Turquia. – desenrola um pedaço de papel que lembra os antigos papiros egípcios e entrega-me:
Fascinante, apesar da pouca idade que aparenta meu jovem interlocutor, não deve ter mais do que vinte e três anos, alto e magro, mas não franzino e sim saudável, percebe-se uma vivacidade grande em seus olhos e em suas maneiras, tem uma voz envolvente e vibrante, não consigo compreender como apresenta de forma tão natural aquele evento que amputou-lhe a família inteira, essa constatação comove-me e faz com que minha atenção seja retida totalmente, ele prossegue:
— Tenho algumas fotos do local da tragédia. – retira um envelope e entrega-me, abro e puxo algumas fotos, realmente é custoso acreditar na devastação causada, posso constatar a nossa inferioridade, fragilidade ante a poderosa Natureza e o misterioso Caos:
— Escrevi todas as minhas impressões e memórias do dia do terremoto, é um documento em aberto que venho acrescentando informações conforme vou lembrando-me ou consigo preencher algumas lacunas. – estende-me umas quatro folhas digitadas que folheio e depois começo uma atenta leitura:

Bam, 28 de Dezembro de 2003.

Ainda procuro entender o que aconteceu naquela manhã, não tinha conseguido dormir e achei que tudo não passava de um terrível pesadelo... Fecho os olhos, os globos saltam e pulsam chegam a lhe doer. Pelas pálpebras, visualiza a lamparina de fora um resquício, o tempo ali deixava de existir como conhecíamos pois apesar da energia elétrica a principal luz era a de lamparinas, através das pálpebras, visualiza a claridade amarela antiga, da lamparina... Antiga, amarela... Ia ausentando-se... O sono envolve... De repente acorda! Aquela maldita claridade, amarela, antiga, isso tudo é tão nítido que completamente o desperta.

Se não fosse aquilo, ele talvez dormisse, tinha experimentado uma espécie de tonteira fluir, arrastar-lhe o corpo como vertigem... Não tem para onde olhar, isso lhe inquieta o receio de mudar daqui para ali, ele finda por se impressionar, há um terror antigo, vago e pueril das revelações das sombras o medo da escuridão.

O sr. Alcides sempre dizia que ali eles orgulhavam-se de ainda poder dormir com as galinhas. Sim senhor, aqui se deita com as galinhas... – deitava-se com as galinhas e fritava-se como ovos, está inquieto, lhe arde a cabeça, os olhos pesados cada vez mais cheios de areia.

Que horas serão? Serão onze horas? Meia-noite... – a fome já começa a anunciar, ao longe, o som do canto do galo, será possível, não, não pode ser ele escuta novamente agora sabe são três horas, assim falava meu avô recitando trechos da bíblia que papai não gostava:

Quando virdes a abominação da desolação no lugar onde não deve estar o leitor entenda, então os que estiverem na Judéia fujam para os montes; o que estiver sobre o terraço não desça nem entre em casa para dela levar alguma coisa; e o que se achar no campo não volte a buscar o seu manto. Ai das mulheres que naqueles dias estiverem grávidas e amamentando! Rogai para que isto não aconteça no inverno! Porque naqueles dias haverá tribulações tais, como não as houve desde o princípio do mundo que Deus criou até agora, nem haverá jamais. Se o Senhor não abreviasse aqueles dias, ninguém se salvaria; mas ele os abreviou em atenção aos eleitos que escolheu. E se então alguém vos disser: Eis, aqui está o Cristo; ou: Ei-lo acolá, não creiais. Porque se levantarão falsos cristos e falsos profetas, que farão sinais e portentos para seduzir, se possível for, até os escolhidos. Ficai de sobreaviso. Eis que vos preveni de tudo.
(MARCOS, 13; 14:23)

Será que vovô já sabia de tudo? Também era um profeta? – devia ser em tudo ao menos aparentava longas barbas brancas, aquela enorme camisa azul que lhe servia de hábito a forma do de sacerdote, o ar misterioso, olhos baços, tez desbotada e os pés nus; o que tudo concorria para lhe tornar a figura mais próxima da dos antigos profetas.

O galo!... Já lhe parecia ter passado um século aquele devaneio e apenas a diferença do tomar fôlego do galo!... Precisa dormir, descansar, tem de aproveitar o restante da noite, duas horas, sim, pois como dizia seu avô:

Ficai de sobreaviso. Eis que vos preveni de tudo. Naqueles dias, depois dessa tribulação, o sol se escurecerá, a lua não dará o seu resplendor; cairão os astros do céu e as forças que estão no céu serão abaladas. Então verão o Filho do homem voltar sobre as nuvens com grande poder e glória. Ele enviará os anjos, e reunirá os seus escolhidos dos quatro ventos, desde a extremidade da terra até a extremidade do céu. Compreendei por uma comparação tirada da figueira. Quando os seus ramos vão ficando tenros e brotam as folhas, sabeis que está perto o verão. Assim também quando virdes acontecer estas coisas, sabei que o Filho do homem está próximo, às portas. Em verdade vos digo: não passará esta geração sem que tudo isto aconteça. Passarão o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão. A respeito, porém, daquele dia ou daquela hora, ninguém o sabe, nem os anjos do céu nem mesmo o Filho, mas somente o Pai. Ficai de sobreaviso, vigiai; porque não sabeis quando será o tempo. Será como um homem que, partindo em viagem, deixa a sua casa e delega sua autoridade aos seus servos, indicando o trabalho de cada um, e manda ao porteiro que vigie. Vigiai, pois, visto que não sabeis quando o senhor da casa voltará, se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã, para que, vindo de repente, não vos encontre dormindo. O que vos digo, digo a todos: vigiai!

(MARCOS, 13; 23:37)

Precisa dormir descansar, tem de aproveitar o restante da noite, é estranho: um cansaço tão grande, e não conseguir conciliar o sono... O sonho, aquele estranho sonho:

Maria e os apóstolos são transportados em uma nuvem a sua antiga casa em Jerusalém, ela os consola e os abençoa, dizendo: "Ficai com Deus, filhos meus mui amados; não choreis porque os deixo, e, sim, alegrai-vos, porque vou para meu Querido." Logo, apresentando seu testamento, recomendou a João, o Evangelista, que repartisse duas túnicas suas para duas jovens que a haviam servido e acompanhado por muitos anos. Chegando o momento de sua morte, ela se recostou em sua cama, enquanto os apóstolos, de joelhos e em pranto e pesar, a beijavam e se despediam. Anjos do céu começaram a chegar e depois o próprio Cristo, descendo em uma nuvem seres angelicais o rodeiam, em meio de uma luz deslumbrante e de doces harmonias celestiais, levam a alma de Maria ao céu, seu cadáver não se corrompe, desprendendo delicadíssimos perfumes, os apóstolos conduzem o corpo de Maria e depositam-na no vale de Josafá, depois de um tempo, chega Tomé, montado em uma nuvem, e, por engano, desce no Monte das Oliveiras, mas nesse instante observa o maravilhoso espetáculo de Maria aos céus, em corpo e alma, levada por seu Filho Jesus e circundada das hostes celestiais, ela por instante vira-se e conversa comigo: — Filho antes onde havia um agora há dois, pois é necessário, aparecerei novamente, para um gentio de fé, que meu amigo Tomé para os antepassados pregou e para três inocentes, doravante importante são essas aparições que tu conheças para cumprirdes o fado que lhe aguarda, não reclame nem desista, pois quanto mais carregado o trigueiro mais curvado ele fica... – dizendo isso desaparece em meio as hostes celestiais e as nuvens, um barulho ensurdecedor começa acredito que o mundo vai acabar e provavelmente era para acabar pelo menos meu pequeno mundo em Bam, quando abro os olhos minha casa esta balançando não acredito e saio correndo é o tempo certo de ela desmoronar atrás de mim e quando olho ao redor vejo a desolação, toda nossa antiga cidade havia realmente testemunhado o apocalipse e agora vivia a tribulação, a noite eterna, o choro e o ranger de dentes era o que sobrava era o que alentava e nos mantinha com a certeza que ainda vivíamos.

Bam, 30 de Dezembro de 2003.
Quatro dias após a tragédia e ainda não consigo acreditar, não há eletricidade, água, comida, remédios, não há nada que lembre nossa época atual realmente vivemos como nossos ancestrais, procuro no meio dos escombros por alguma esperança, algum sobrevivente, alguma mercadoria que possa ser trocada, negociada, pois o dinheiro não existe e também não tem mais valor, impera o sistema de troca.
Garimpeiros de campos santos, nossos descobrimentos são revelações macabras, cada corpo descoberto é uma alegria e uma tristeza, antítese natural, ante tanto sofrimento e dor surge um milagre um recém-nascido com cinco dias sobreviveu no berço aquecido, sem energia elétrica, água, leite, afeto, um mistério de Deus; no meio dos escombros outro milagre um conjunto de documentos, que irão mudar o rumo de minha vida, jornada, etapa, fé, um assombro de Deus...
— Deixe-me analisar melhor os documentos que encontrastes Hafiz, meu amigo. – digo-lhe estendendo o diário, ele por sua vez recolhe o mesmo e depois de um tempo entrega-me os empoeirados testemunhos, os vestígios, o que sobrou desentranhado da terra, uma terra amarela, quente, seca, acre, terra do deserto, antiga, esquecida, abandonada...
— Professor Augusto correspondência para o senhor entra espavorido, Mauro meu assistente. — Cuidado Mauro, estamos diante de documentos antiqüíssimos não podemos vacilar, senão deixaremos marcas indeléveis nos mesmos, este aqui é Hafiz... Hafiz, meu assistente Mauro.
Os dois jovens entreolham-se e cumprimentam-se respeitosamente, prossigo na análise dos documentos, parecem ser muito precisos e antigos, porém no meu escritório não tenho equipamento suficiente para analisar a autenticidade dos mesmos, lembro-me que devido meu tempo de serviço, dez anos ininterruptos sem distrações ou férias, estava na hora de abandonar-me a uma aventura, pois os anos passavam-se e eu permanecia naquela curva de rio somente acumulando tranqueiras, não, libertar-me-ia daquela sufocante prisão, convidaria Hafiz para ir até o Egito encontrar-me com um velho conhecido, Aziz Tel'Ab Hussein, que certamente esclarecer-me-ia sobre a autenticidade do códex...

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Chamamento

33. Assim, pois, qualquer um de vós que não renuncia a tudo o que possui não pode ser meu discípulo. 34. O sal é uma coisa boa, mas se ele perder o seu sabor, com que o recuperará? 35. Não servirá nem para a terra nem para adubo, mas lançar-se-á fora. O que tem ouvidos para ouvir, ouça! (Lucas, 14:31-35.)


Vagando, tudo que recordo é o desabrochar da Rosa-Aurora ou quem sabe o flamejar da Destruição:

Quem sou?

Para onde vou?

O que fiz?

O que terei que fazer?

Pensamentos chocam-se em minha mente, vejo o brilho da salvação? Ou da danação? Mergulhado em angústias lanço-me, aceito o destino, como será minha natureza?

Doentia como o avaro que só no vil metal sente satisfação, ou esperançosa como a do náufrago, que na escuridão crê ter visto lampejos de um farol...

O chamamento, aquele som, quase imperceptível, a última melodia, o que resta é andar, resignado continuo meu caminho, só tenho a percepção de caminhar e assim continuo...

Qual será a pior das prisões? A solitária cova, a comunhão da vala, ou não ter direção, referência, marco, nada familiar, tudo igual, a vastidão, estou perdido...

Algo irá acontecer, percebo a mudança de tom ao meu redor, constatação que me angustia, fato este que amplificará minha visão ou cegar-me-á definitivamente, caminhar sem ver a vastidão do espaço, será minha punição...

A audição é fraca e tudo se desloca, subitamente, paro, estaciono em algo que não consigo tocar, nem ver, mais uma vez perdido, começo a chorar, um choro fino, triste, sofro, o corpo encolhe-se e começa a vibrar, de repente um som que já conheço...

— Vamos mais para frente, vem sua preguiçosa. – disse Thermuthis para sua pajem. O sol jamais tinha visto aquela rara beleza nua, pois, Thermuthis tomava apenas banhos de Lua, para não enlouquecer os homens com sua beleza, banhava-se apenas a noite na companhia de suas pajens.

— O choro vem daqui de algum lugar! Ali há um cesto, o que será que contém. – ao aproximar-se do cesto, ela viu a imagem mais bonita que já tinha depositado os olhos, nenhuma jóia de seu pai, ou de sua mãe rivalizava-se em beleza com a maravilha contida no cesto, presente dos deuses, nem o próprio Nilo, a maior jóia do Egito, podia rivalizar-se com tal milagre, nem a planta ou a folha de papyro desenhado pelo mais habilidoso dos escribas, comparava-se com aquela frágil criaturinha, encolhida, chorando...

Seu instinto foi confortá-lo com um abraço, retribuído, desesperadamente, ternamente, enfim ela encontrou o que procurava, a felicidade bafejara-lhe o rosto, enfim conseguira preencher aquele vazio que a atormentava.

Essa estória ecoa em minha mente, não há como evitar, por isso entrego-me e assim, sou moldado, lapidado, forjado... — Não precisa deste sacrifício, meu filho. – diz-me, Ele, docemente.

— Faço questão – exijo. O golpe é certeiro, não sinto nada além do que deveria. — Nossa aliança está selada, em meu nome proclamarás, por ti verão minha glória, minha justiça e lealdade, em troca terão apenas que seguir a justa medida, o reto caminho e a bondade. – o chamamento, o sacrifício e a redenção. Lançar-te-ei por tempos, terras e pessoas desconhecidas que poderão não entende-lo e chegarão muitas vezes o machucar, lembre-se ao seu lado sempre estarei e tua alegria assim como tua tristeza será minha.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Prólogo

[...] vendo-o então condenado, tomado de remorsos, foi devolver aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos as trinta moedas de prata,
4. dizendo-lhes: Pequei, entregando o sangue de um justo. Responderam-lhe: Que nos importa? Isto é lá contigo!
5. Ele jogou então no templo as moedas de prata, saiu e foi enforcar-se.
(Mateus 27:5)

Ausente, sem localização, sinal familiar, marco... Simplesmente vagando, perdido a impotência aumenta, ganha força, substância, forma e corpo. Preciso sair do abismo, ausência de chão...

O médico portentoso, altivo, desdenha, duvida, redige: friamente... Retilineamente... — Compreenda que esta é sua última chance... – voz mecânica, a sentença é decretada.

— O tratamento, será que segue? – indagação monótona, mastigada, o desprezo, indiferença, aqueles dizeres, sem sentido, quais eram mesmos... “A vigilância diária será um pequeno preço a pagar pela paz de espírito...” Sonho e encontro refúgio, proteção, abrigo, também enfrento o mar bravio, que me fustiga o rosto, arranca-me o espírito, aterroriza a alma...

— Esse aí só no choque doutor, não tem mais jeito não. – grunhe o enfermeiro: — Terapia intensiva, quanto mais força exerço, mais apertado o abraço, fugir é impossível.

— Vá por ali. – rosna-me o enfermeiro, sigo por um corredor, repetitivo, portas iguais, paramos percebo que já estivera ali, o corpo estremece involuntariamente, o doutor gentilmente diz:
— Vem por aqui... – a descarga faz-me lembrar que todo ritual inicia-se com o cântico negro, imploro, rezo e suplico, porém não há lugar para orações a tribulação começou e tudo que existe é muito choro e ranger de dentes.
Como escapei? Não recordo, por onde andei? Esqueci... Depois de muito vagar... Finalmente, a paz, um quarto de hotel, beira de estrada, revólver na mão. O espaço preenchido por um trêmulo rabiscar, incongruente escrever, meu testamento, um pedaço de papel qualquer, como testemunha o tique-taque, monótono, do despertador, a respiração inconstante, o pulsar do coração frenético...
Não enxergo, de repente, a revelação: A mensagem é clara, olhar o coração, última profecia, profetiza o último profeta... Em vão busco algo para ater-me, súbito ocorre-me a lembrança, sempre há uma bíblia no criado-mudo, procuro ensandecido por este bálsamo responsável por curar as chagas de um corpo puído, ou diminuir as feridas que carrego.

Vou até o criado mudo, sento na borda da cama, abro a gaveta e então encontro um livro, porém não é meu bálsamo ambicionado, não ao invés da bíblia, encontro um volume, cujo título é: “A LUZ E A ESCURIDÃO”.

O destino destila sua ironia, eu curioso em relação a um livro, justamente na hora da minha morte, será que estava tentando recuperar o tempo perdido, sempre fugi da escola, contudo, confesso, o título causou-me uma profunda estranheza: que luz será aquela, talvez o raiar da Aurora ou quem sabe a efêmera existência do Crepúsculo. Sendo assim, resolvi adiar a execução de minha sentença, peguei o livro e...

Comecei a lê-lo...