quinta-feira, 24 de junho de 2010

A Lenda de Preste João

Se abriram as cortinas e subitamente vimos o Preste João, ricamente adornado sobre uma plataforma de seis degraus. Tinha em sua cabeça uma grande coroa de ouro e prata. Uma de suas mãos apoiava uma cruz de prata (...) À sua direita, um pajem apoiava uma cruz de prata bordada em forma de pétalas (...) O Preste João usava um belo vestido de seda com bordados de ouro e prata e uma camisa de seda com mangas largas. Era uma bela vestimenta, semelhante a uma batina de um bispo, e ia de seus joelhos até o chão (...) Sua postura e seus modos são inteiramente dignos do poderoso personagem que é.
(Francisco Alves, embaixador português enviado à Etiópia, século XVI)


Em meu laboratório começamos a inspecionar os pergaminhos que estavam em ótimo estado de conservação pegando um ao acaso, percebo que se trata da história de Portugal e incentivo meu amigo: — Esse pergaminho narra as “Sete Partidas” do infante D. Pedro, o que senhor sabe sobre ele meu caro colega Augusto.
— D. Pedro, infante de Portugal , 1º duque de Coimbra, nascido em 1392 faleceu em 20 de Maio de 1449 foi um príncipe da Dinastia de Avis, filho do rei D. João I e de D. Filipa de Lencastre. Entre 1439 e 1448 foi regente de Portugal. Devido às suas viagens ao estrangeiro, ficou conhecido como o Infante das Sete partidas. Tendo recebido nelas o feudo de Treviso, pelo imperador Segismundo da Hungria, e investido cavaleiro da Ordem da Jarreteira pelo seu primo Henrique IV de Inglaterra. As notícias, em forma de lenda, do Preste João chegavam à Europa oralmente através de embaixadores, peregrinos e mercadores, sendo posteriormente confirmadas pelo infante D. Pedro, que viajara "pelas sete partidas do mundo".
— Não consigo compreender o que vem a ser estas sete partidas pelo mundo o senhor poderia esclarecer melhor professor? – pergunta-me Hafiz e por minha vez esclareço-lhe:
— A história começa assim AS SETE PARTIDAS DO MUNDO foi um empreendimento que o Infante D. Pedro homem estudado gostaria de saber e sentir o que se passa no resto do mundo e decide viajar. Não só para visitar e conhecer as principais Cortes da Europa, mas também a Terra Santa e, se possível, o lendário Reino do Preste João, com a anuência do pai, dinheiro e cartas de crédito sobre banqueiros italianos, resolve partir de Portugal. Olho para meu colega Augusto que pede a palavra:
— Em 1418 o Infante D. Pedro parte de Lisboa e acompanhado por, cavaleiros andantes, parte rumo ao desconhecido, começa sua jornada pelo reino de Castela e em Valhadolid encontra-se com o rei de Castela, seu primo, o qual lhe cede alguns intérpretes de línguas orientais.
De Valhadoli parte para a Hungria, e o imperador Segismundo o acolhe calorosamente, com ele o infante, enfrenta os hereges hussitas da Boémia e, durante cinco anos, envolve-se em batalhas na Alemanha, recebendo o feudo de Treviso, no final da guerra. Em 1424 deixa Treviso e ruma para Chipre e de lá para a Terra Santa, refazendo o itinerário dos antigos cruzados... – retomo a palavra e prossigo:
— Depois parte ele para a ilha de Patmos e é recebido faustosamente por Amurat II, Sultão da Turquia. Percebe que a expansão otomana irá converter-se num grave problema para a Europa. Parte para Constantinopla e dali navega até ao norte de África, Alexandria e Cairo. Visita à Palestina e a Terra Santa. Regressa ao Cairo e em 1425 embarca para o sul da Europa. Alcança Paris donde passa para a Corte da Dinamarca e dali para a Inglaterra onde o seu primo Henrique IV o investe na Ordem da Jarreteira.
Viaja para Ostende, em Flandres, onde combina o casamento da sua irmã Isabel com Filipe, o Bom. Demora-se dois anos na Corte flamenga. Exerce influências para intensificar o comércio luso-flamengo. É de Bruges que, em 1427, escreve a D. Duarte, seu irmão, carta que há de ficar famosa.
Em 1428 retorna à Hungria e, como duque de Treviso, segue para Veneza, recebe múltiplos presentes, entre as quais um exemplar do Livro de Marco Polo que entregará mais tarde ao Infante D. Henrique. Ainda em Veneza compra um mapa-múndi com o traçado das vias comerciais entre o Oriente e a cristandade. Mapa-múndi que também oferecerá a seu irmão Henrique. De Veneza avança para Roma onde é recebido pelo Papa Martinho V.
Dez anos demorou a viagem do Infante D. Pedro pelas “Sete Partidas do Mundo”. Muito viu e assimilou, e muito ficou sabendo.

Agora para aclarar nossa percepção sobre o Preste João ninguém melhor que nosso querido e estimado colega Professor Aziz, por favor, conte-nos sobre a lenda do Preste João, caro colega:
— O Preste João foi um lendário soberano cristão do Oriente que detinha funções de patriarca e rei, correspondendo, na verdade, ao Imperador da Etiópia. "Preste" é uma corruptela do francês Prêtre, ou seja, padre... Diz-se que era um homem virtuoso e um governante generoso, seu reino condensam-se o reino cristão-monofisita da Abissínia e os cristãos nestorianos da Ásia Central. Diz-se também que era descendente de Baltasar, um dos Três Reis Magos. Como notícias palpáveis desse império cristão eram escassas, dilatava-se a fantasia em redor do seu reino: falava-se de monstros vários (entre os quais os homens com cabeça de cão), paisagens edénicas, etc. O Inferno e o Paraíso num só território.

O ritmo monótono da voz a longa viagem a noite mal dormida, em um local estranho começo a devanear sento e apóio-me para melhor escutar o professor Aziz, porém o sono toma conta de meu corpo – Hafiz não seria melhor ires lavar o rosto... — Não está tudo bem – respondo num ímpeto porém o sono é mais forte e de repente... Vejo-me em um tempo distante, em uma terra estranha, alguém discursa em uma língua estrangeira, que não sei como já conheço:

Mas tu, Belém-Efrata, tão pequena entre os clãs de Judá, é de ti que sairá para mim aquele que é chamado a governar Israel. Suas origens remontam aos tempos antigos, aos dias do longínquo passado. Por isso, (Deus) os deixará, até o tempo em que der à luz aquela que há de dar à luz. Então o resto de seus irmãos voltará para junto dos filhos de Israel. Ele se levantará para (os) apascentar, com o poder do Senhor, com a majestade do nome do Senhor, seu Deus. Os seus viverão em segurança, porque ele será exaltado até os confins da terra.
Meu pai viu a grande estrela, e caminhou até ela, encontrando o verbo em carne... Pois Baltasar, era esse seu nome, era mouro, de barba cerrada e partira do Golfo Pérsico, na Arábia Feliz. Em seu caminho encontrou com: Gaspar e Melquior; Gaspar significa “Aquele que vai inspecionar”, Melquior quer dizer: “Meu Rei é Luz”, e Baltasar se traduz por “Deus manifesta o Rei”.
Eles representavam os reis de todo o mundo, e as três raças humanas existentes. Assim, Melquior primeiro entregou-lhe ouro em reconhecimento da realeza; Gaspar, incenso em reconhecimento da divindade; e meu pai, mirra em reconhecimento da humanidade.
Antigamente, o ouro era presente para reis, representado o poder material; o líbano (incenso) para um sacerdote, representando a espiritualidade; e a mirra, para um profeta, a mirra era usada para embalsamar corpos e, simbolicamente, representava a imortalidade.
Abençoado fui em ser filho de meu pai e herdar este reino maravilhoso, com um exército imenso: minha milícia levava “treze grandes e altas cruzes, feitas de ouro e de pedras preciosas (...) e a cada uma delas seguem dez mil soldados e cem mil peões armados”. Com este poderoso exército, conquistei Ectabana, capital persa, dirigindo-me para o norte, e então regressando a meu país.
Amaldiçoado fui em enviar uma carta narrando as principais maravilhas de meu reino para ao imperador bizantino Manuel I Comneno, esta carta foi posteriormente recuperada pelo bispo Oto de Freising. O bispo na corte de Frederico I, o Barba-Ruiva, enviou ao papa e ao próprio Frederico I. Criando uma febre do ouro para meu reino.
Nesta carta descrevia: meu palácio que era ricamente decorado. Teto de cedro, cobertura de ébano, em seu cume dois pomos de ouro, portas de sardônica, janelas de cristal, mesas de ouro e ametista com colunas de marfim. Além disso, existiam seres fantásticos: “bois selvagens, sagitários, homens selvagens, homens com cornos, faunos, sátiros e mulheres da mesma raça, pigmeus, cinocéfalos, gigantes, cuja altura é de quarenta côvados, monóculos, ciclopes e uma ave que chamam fénix e quase todo o género de animais que existem debaixo do céu.”
Além disso, narro o fato de possuir a almejada Fonte da Juventude, melhor do que a pedra filosofal dos alquimistas, pois sempre tinha eu um aspecto jovem, (apesar de ter então 562 anos de idade) porque banhava-se na própria Fonte da Juventude. A carta situa a Fonte num bosque, no sopé do monte Olimpo, não muito longe do Paraíso “de onde Adão foi expulso”: “Se alguém beber em jejum três vezes dessa fonte, a partir desse dia nunca mais sofrerá de qualquer doença e será sempre, enquanto viver, como se tivesse trinta e dois anos de idade”. A notícia dessa carta que contava as maravilhas de meu reino espalhou-se pela Europa. Até o século XV foram feitas várias traduções e cópias. Suas diferentes versões descrevem as maravilhas de meu reino. Jóias corriam nos rios, o meu palácio abrigava trinta mil pessoas à mesa, todos os dias “ não contando com os forasteiros que chegam ou partem. E todos eles recebem em cada dia, da nossa câmara, ajudas de custo quer em cavalos quer em outras espécies”
Em meu reino estava também a Árvore da Vida, que fazia fronteira com o Paraíso, a apenas um dia de distância. (Mas ela é guardada por uma serpente duas vezes maior que um cavalo, tendo ainda nove cabeças e duas asas. Vigilante o tempo todo, ela dormia apenas no dia de São João Batista, quando se podia recolher o bálsamo que a árvore produz e do qual se faz o crisma, o óleo sagrado) – retorno a realidade sentindo o cheiro de mirra e uma poça de saliva nos meus pés, refaço-me o mais depressa possível, enquanto isso o professor Aziz continua sua digressão:
— Mas qual o interesse do bispo Oto de Freising para divulgar um rei lendário, um reino fantástico e falsificar esta carta? Devemos buscar no contexto político germânico da época as causas da atitude do bispo alemão. Em primeiro lugar, as lutas internas no Império entre guelfos e gibelinos — o professor estava empolgado parecia um profeta pregando no deserto – guelfo — de Welf, ou Guelf, era o tio do duque Henrique da Baviera, que se opôs à eleição de Conrado III da Suábia, o primeiro da dinastia dos Hohenstaufen; gibelino — de Waiblingen, aldeia pertencente aos Hohenstaufen. Mais tarde, na Itália, com as campanhas de Frederico contra a Liga Lombarda, guelfo passou a designar os partidários do papa, e gibelino os partidários do imperador. – a carta então era por isso que tinha sonhado com a mesma...
— Mas veja bem meu caro colega Aziz outra questão importante era a disputa entre Frederico e o papa Alexandre III, o poder temporal versus o poder espiritual — que tinha suas origens na Questão das Investiduras — uma grande crise que assolou as relações entre o Império e o Papado, e, na verdade, entre a Igreja e as Monarquias européias, no período de 1075 a 1122.
Ora vejamos a história de Portugal neste período, após muitos fracassos militares de D. Raimundo contra os mouros, Afonso VI decidiu em 1096 doar o governo das terras mais a sul do Condado da Galiza, ao Conde D. Henrique, seu primo, fundando assim o Condado Portucalense, o nome do condado vem do topónimo Portucale, com o qual desde o século IX se designava uma cidade situada perto da foz do Douro, designada de Portus Cale, "Porto de Cale", que se julga ser um nome híbrido formado por um termo latino (Portus, "porto") e outro grego (καλός, transl. kalós, "belo"), donde qualquer coisa como "Porto Belo"; Outra explicação é de que o nome deriva dos povos de cultura castreja que habitariam a área de Cale nos tempos pré-romanos - os Callaeci. Uma explicação alternativa é a de que o nome deriva da deusa venerada pela tribo e que poderia históricamente relacionar-se com a palavra Cailleach (definida como "deusa ancestral"), na Irlanda, numa invasão celta proveniente da Galécia e que teria nesses primórdios invadido a actual Irlanda. Uma outra teoria afirma que a palavra cale ou cala, seria celta e significava "porto", uma "enseada" ou "abrigo", e implicava a existência de um porto celta mais antigo..
Com o governo do Conde D. Henrique, o Condado Portucalense conheceu a estabilidade política e a luta pela independência, apesar de nunca ter conseguido alcançá-la, somente, após sua morte, quando seu filho D. Afonso Henriques subiu ao poder, Portugal conseguiu a sua independência com a assinatura em 1143 do Tratado de Zamora, ao mesmo tempo que conquistou localidades importantes como Santarém, Lisboa, Palmela e Évora dos mouros. A Igreja católica tinha enorme interesse em divulgar a fé pelo mundo e projetava junto a Portugal a expansão marítima, o relato de novas e paradisíacas terras chamavam a atenção do Papa que mostraria o Paraíso na Terra, dessa forma, a igreja patrocinou as grandes navegações, impulsionando a fé através da companhia de Jesus, ou os jesuítas, entende meu caro Hafiz, sua ordem tinha um amplo interesse em colonizar, espalhar e mapear a fé católica pela vastidão do mundo.
O papa enviou para essa missão Cristóvão Colombo, cujo nome significa o pombo portador de Cristo, praticamente espírito santo, para que conforme estava escrito na Bíblia em Gênesis, vamos procurar, aqui no capítulo seis, versículo seis ao onze:
No fim de quarenta dias, abriu Noé a janela que tinha feito na arca e deixou sair um corvo, o qual saindo, voava de um lado para outro, até que aparecesse a terra seca. Soltou também uma pomba, para ver se as águas teriam já diminuído na face da terra. A pomba, porém, não encontrando onde pousar, voltou para junto dele na arca, porque havia ainda água na face da terra. Noé estendeu a mão, e tendo-a tomado, recolheu-a na arca. Esperou mais sete dias, e soltou de novo a pomba fora da arca. E eis que pela tarde ela voltou, trazendo no bico uma folha verde de oliveira. Assim Noé compreendeu que as águas tinham baixado sobre a terra.
Em vez de um ramo de oliveira ele retornaria com algo que mostraria que não apenas água havia a oeste, na direção que o sol se punha, mas sim terras virgens, que poderiam ser as portadoras, da Fonte da Juventude, da Árvore da Vida, do Paraíso Terrestre e do Eldorado, sim todas as lendas poderiam ser concretizadas nestas terras ainda por serem desbravadas.
— Meu caro amigo Augusto antes que passemos da Ásia para a América vamos para a África, é necessário mostrar por que o mito do Preste João mudou geograficamente de posição. Considero a narrativa de Marco Polo essencial para delimitar esse marco.
No seu livro, O Livro das Maravilhas, Marco Polo confirma a existência de Preste João na Ásia. Chegando a Karakorum, “cidade de três milhas de circunferência” na planície de Tangut, Polo relata que o povo que vivia nessa região, os tártaros, não tinham rei, mas pagavam tributo a um senhor, a um Kã, que era o próprio Preste João, filho do rei mago Baltasar. Os tártaros davam-lhe dez cabeças de gado, o dízimo, o povo multiplicava-se e Preste João decidiu dividi-lo por várias regiões, e enviar, para governá-las, alguns dos seus nobres.
Compreenda jovem Hafiz, Preste João governava um império de muitos povos: Seus súditos eram abençoados por terem um rei tão sábio, maravilhoso e justo, a semelhança com Salomão é clara, vejamos o que diz a Bíblia:
Deus deu a Salomão a sabedoria, uma inteligência penetrante e um espírito de uma visão tão vasta como as areias que estão à beira do mar. Sua sabedoria excedia a de todos os orientais e a de todo o Egito. Ele era o mais sábio de todos os homens, mais sábio do que Etã, o ezraíta, do que Hemã, Chacol e Dorda, filhos de Maol; e sua fama espalhou-se por todos os povos vizinhos. Pronunciou três mil sentenças e compôs mil e cinco poemas. Falou das árvores, desde o cedro do Líbano até hissopo que brota dos muros; falou dos animais, das aves, dos répteis e dos peixes. De todos os povos vinham pessoas ouvir a sabedoria de Salomão, da parte de todos os reis da terra que tinham ouvido falar de sua sabedoria.”
(REIS, LIVRO I, Capítulo: 4, 19:28).
Preste João proclamava-se imperador de setenta e dois reinos na Ásia — o número setenta e dois era uma analogia a Isidoro de Sevilha , que escreveu a obra enciclopédica Etymologiarum Libri XX, compendiando vinte livros com os conhecimentos da época sobre artes e ciências, obra monumental que organizou todo o conhecimento da época como um autêntico banco de dados.
“De fato, segundo a autoridade de Isidoro de Sevilha, o mundo é formado por 72 povos (44: IX, 2, 2), e Preste João afirma na sua carta governar 72 províncias, cada uma delas tendo um rei que lhe é tributário”.
Os tártaros se recusaram a acatar-lhe, fugiram para o deserto e declararam Gêngis o novo Kã, ele enviou emissários a Preste João, pedindo-lhe sua filha como esposa, na página 93 do Livro das Maravilhas, Marco Pólo relata que Preste João, ofendido, expulsou os mensageiros, dizendo-lhes: “Dizei ao vosso povo que o condeno à morte por ser traidor e desleal, e por ter a audácia de pedir a filha do seu senhor para mulher, e que eu o farei morrer de morte afrontosa”
A batalha estendeu-se durante dois dias, as duas hostes inimigas bateram-se duramente, foi a maior e mais encarniçada luta que a humanidade jamais viu. Houve grandes perdas, duma parte e doutra, mas afinal venceu Gêngis Ka e morreu Preste João, veja bem na página 95 do Livro das Maravilhas, lê-se: “Contei-vos como os tártaros elegeram o seu primeiro grã-senhor e como venceram Prestes João.”
Com um distanciamento frio, objetivo, sem dor, e sem lamentação, digno da melhor qualidade de texto jornalístico assim Marco Polo narrou a morte do mito, última esperança do cristianismo na luta contra o Islã. E por quê?
Marco Polo é um homem que testemunha a transição do antigo feudalismo para o início do capitalismo, percebe-se o embrião da balança comercial que penderia para o Oriente durante muitos séculos sendo superada pelo Ocidente apenas com a Revolução Industrial, Marco Polo é um marco, perdoem-me o trocadilho, mas ele é o elo entre o antigo e o atual, o novo num tempo ainda antigo, ele é colocado na curva dos acontecimentos, na virada de um modo de agir de pensar e de colocar-se socialmente, sua visão é dianteira, direcionada para a troca, o comércio, a globalização. O mito faz parte do passado, é intransigente e unilateral. Marco Polo representa a multiplicidade, os dois mundos interagindo: é a alavanca para o desenvolvimento, afinal é veneziano, cosmopolita, renascentista, ele consegue até negociar com aqueles que mataram um grande bastião católico na Ásia, mas como iremos perceber o mito apenas é transferido da Ásia para África, pois quando Marco Polo “mata” o mito, está contribuindo para essa transposição geográfica: na verdade, as pessoas ainda desejavam que Preste João existisse, o Ocidente ainda o tinha como sinal paradigmático para as cruzadas.
A Europa ainda estava sendo pressionada militarmente pelo Islão, principalmente em suas áreas limítrofes: o Império Bizantino e a Península Ibérica (que então estava no auge de seu processo de Reconquista). Preste João ainda era a esperança da abertura de uma segunda frente, provavelmente por isso a sua transferência geográfica para a África, o mito no século XIV renasce na Etiópia, Segundo Guillaume Mollat : primeiro a situar seu reino “ao sul do Egito” foi o cartógrafo genovês Angelino Dulcert. O desconhecimento europeu em relação ao reino etíope, devido ao não-mapeamento das fontes do Nilo (porque por terra havia o Deserto do Sudão e o Maciço Etíope) também criava um clima propício ao desenvolvimento de lendas maravilhosas.
Conta uma dessas lendas que Makeda era a rainha de Sabá (Etiópia). Sabá seria o Reino de Aksum, mais tarde o Império da Etiópia, que ocupava o sudoeste da península arábica, de qualquer modo, maravilhada com as preciosidades trazidas do reino de Salomão por um mercador, a rainha de Sabá resolveu fazer uma visita pessoalmente:
A rainha de Sabá, tendo ouvido falar de Salomão e da glória do Senhor, veio prová-lo com enigmas. Chegou a Jerusalém com uma numerosa comitiva, com camelos carregados de aromas, e uma grande quantidade de ouro e pedras preciosas. Apresentou-se diante do rei Salomão e disse-lhe tudo o que tinha no espírito. A tudo respondeu o rei. Nenhuma de suas perguntas lhe pareceu obscura, e deu solução a todas. Quando a rainha de Sabá viu toda a sabedoria de Salomão, a casa que ele tinha feito, os manjares de sua mesa, os apartamentos de seus servos, as habitações e uniformes de seus oficiais, os copeiros do rei e os holocaustos que ele oferecia no templo do Senhor, ficou estupefata, e disse ao rei: É bem verdade o que ouvi a teu respeito e de tua sabedoria, na minha terra. Eu não quis acreditar no que me diziam, antes de vir aqui e ver com os meus próprios olhos. Mas eis que não contavam nem a metade: tua sabedoria e tua opulência são muito maiores do que a fama que havia chegado até mim. Felizes os teus homens, felizes os teus servos que estão sempre contigo e ouvem a tua sabedoria! Bendito seja o Senhor, teu Deus, a quem aprouve colocar-te sobre o trono de Israel. Porque o Senhor amou Israel para sempre, por isso constituiu-te rei para governares com justiça e eqüidade.
(REIS, LIVRO I, Capítulo: 10, 1:9).
Mais adiante a passagem bíblica é deveras reveladora observem: “O rei Salomão deu à rainha de Sabá tudo o que ela desejou e pediu, além dos presentes que ele mesmo lhe fez com real liberalidade. E a rainha retomou o caminho de volta com a sua comitiva.” (REIS, LIVRO I, Capítulo: 10, 13) permite uma aproximação com a tradição apócrifa em que sou especialista, pois estou estudando os pergaminhos de Nag Hamadi : Makeda seria seduzida por Salomão, e geraria um filho de nome Menelike, que será sagrado rei por Salomão “e voltará com um grupo de jovens notáveis à Etiópia, não sem terem subtraído a arca da Santa Aliança, para a honrarem em África”, assim se inicia uma dinastia salomônica na Etiópia, conferindo-lhe uma condição mítica que desembocará na lenda de Preste João no século XIV.
No século IV o reino etíope de Aksum se converteu ao cristianismo pelas mãos de Fromentius, sagrado monge sírio bispo e chefe espiritual da Etiópia por Santo Atanásio, patriarca de Alexandria, Atanásio havia afirmado que a humanidade de Cristo estava absorvida na sua divindade — proposição de unidade da natureza de Cristo (monofisismo) — e foi condenado pelo Concílio de Calcedônia (451). A Igreja etíope é, portanto, herética e cismática, seguindo o rito litúrgico e o calendário copta egípcio, além de certos costumes sincréticos, como, por exemplo, “danças arrebatadas, tambores, sacrifícios de cabras; interdição de entrar na igreja no dia seguinte a relações sexuais e a observação do sábado em vez do domingo resultam da prática judaica”- encerra triunfalmente o professor Aziz.
Prosseguindo com a história de Portugal no tempo do rei Lebna Denguel (Incenso da Virgem) (1508-1540), a regente Helena, uma princesa muçulmana convertida, mandou um mensageiro a Portugal, Mateo, o Armênio, durante uma série de escaramuças do reino etíope com as potências islâmicas da costa. Uma embaixada portuguesa foi enviada em 1520, no entanto, parece que os portugueses foram acolhidos sem entusiasmo, pois Lebna Denguel teria ficado decepcionado com os poucos presentes provenientes da Europa, e zombara quando lhe mostraram num mapa o pequeno Portugal em comparação com seu reino (cuja extensão era exagerada por causa das técnicas de representação cartográfica), Lebna Denguel encheu-se de orgulho e ficou consternado com o fato dos reinos cristãos recorrerem às armas. De qualquer modo, aceitou ceder Massawa como base naval a Portugal e prometeu a sua aliança contra os Muçulmanos. Por sua parte, pediu artesãos e médicos.
Na embaixada portuguesa encontrava-se Francisco Alves, padre e capelão. Devemos a ele a primeira descrição do Preste João. Ele foi o primeiro cristão a "ver", e, por consegüinte, "matar" o mito: Se abriram as cortinas e subitamente vimos o Preste João, ricamente adornado sobre uma plataforma de seis degraus. Tinha em sua cabeça uma grande coroa de ouro e prata. Uma de suas mãos apoiava uma cruz de prata (...) À sua direita, um pajem apoiava uma cruz de prata bordada em forma de pétalas (...) O Preste João usava um belo vestido de seda com bordados de ouro e prata e uma camisa de seda com mangas largas. Era uma bela vestimenta, semelhante a uma batina de um bispo, e ia de seus joelhos até o chão (...) Sua postura e seus modos são inteiramente dignos do poderoso personagem que é...
Entreolham-se os professores realizados por tão vasta e penetrante explanação e riem-se do pobre Hafiz que se encontra totalmente entregue a Morpheus...

Nenhum comentário:

Postar um comentário