terça-feira, 1 de junho de 2010

Hafiz Miguel Passos

"Allah! Não há mais divindade além d’Ele, Vivente, Subsistente, a Quem jamais alcança a inatividade ou o sono; d’Ele é tudo quanto existe nos céus e na terra. Quem poderá interceder junto a Ele, sem a Sua anuência? Ele conhece tanto o passado como o futuro, e eles (humanos) nada conhecem a Sua ciência, senão o que Ele permite. O Seu Trono abrange os céus e a terra, cuja preservação não O abate, porque é o Ingente, o Altíssimo"
(ALCORÃO)


Sou natural de Bam, uma cidade esquecida no sul do Irã, ela foi construída sobre a antiga fortaleza de Arg-é Bam, uma extensa estrutura feita de adobe que abrigou a Rota da Seda por dois mil anos. A UNESCO até considerou a região como candidata a Patrimônio Mundial da Humanidade, antes do terremoto do ano passado...
Um poderoso terremoto ocorrido no dia 26 de dezembro de 2003 praticamente devastou a cidade, matou quarenta mil pessoas, entre elas minha família sou o único sobrevivente dos Passos, pois todos os outros trinta e seis constituintes faleceram inclusive meu pai e minha mãe, bem como irmãs e irmãos; avôs e avós; tios e tias, mas não estou aqui para lamentar-me como posso assegurar-lhe venho apenas devido à missão que foi me incumbida e que será cumprida.
Esta foto mostra a localização de minha cidade. – ele retira uma foto com uma nitidez impressionante provavelmente de um satélite, observo a insignificância da cidade perante os marcos naturais do relevo:
Ele continua dizendo. — Segundo o centro de pesquisas geológicas americano, o tremor, foi de intensidade aproximada de 6.5 graus na escala Richter, um terremoto dessas proporções é classificado como forte, tendo o poder de destruir regiões em um raio de até cento e oitenta quilômetros em áreas habitadas, tem uma freqüência de um a cada cento e vinte anos, o terremoto destruiu cerca de setenta por cento da cidade segundo estimativa do centro americano, houve um agravante por se tratar de uma cidade histórica era construída de adobe, tijolos de terra crua, água e palha e algumas vezes outras fibras naturais, moldados em fôrmas por processo artesanal ou semi-industrial...
O Irã é um país montanhoso, sujeito a severos terremotos, em uma zona de subducção onde a placa da Arábia afunda abaixo da placa Eurasiana. Esta colisão pressiona as bordas da placa Eurasiana, resultando em terremotos freqüentes e extensas cadeias de montanhas.
Esta imagem que entreguei para o senhor demonstra essa localização, a foto foi tirada pelo satélite Landsat em 01 de outubro de 1999 mostra a região atingida, através dos sensores Enhanced Thematic Mapper Plus.
Aqui tenho o evento registrado pelo sismógrafo de Ankara, Turquia. – desenrola um pedaço de papel que lembra os antigos papiros egípcios e entrega-me:
Fascinante, apesar da pouca idade que aparenta meu jovem interlocutor, não deve ter mais do que vinte e três anos, alto e magro, mas não franzino e sim saudável, percebe-se uma vivacidade grande em seus olhos e em suas maneiras, tem uma voz envolvente e vibrante, não consigo compreender como apresenta de forma tão natural aquele evento que amputou-lhe a família inteira, essa constatação comove-me e faz com que minha atenção seja retida totalmente, ele prossegue:
— Tenho algumas fotos do local da tragédia. – retira um envelope e entrega-me, abro e puxo algumas fotos, realmente é custoso acreditar na devastação causada, posso constatar a nossa inferioridade, fragilidade ante a poderosa Natureza e o misterioso Caos:
— Escrevi todas as minhas impressões e memórias do dia do terremoto, é um documento em aberto que venho acrescentando informações conforme vou lembrando-me ou consigo preencher algumas lacunas. – estende-me umas quatro folhas digitadas que folheio e depois começo uma atenta leitura:

Bam, 28 de Dezembro de 2003.

Ainda procuro entender o que aconteceu naquela manhã, não tinha conseguido dormir e achei que tudo não passava de um terrível pesadelo... Fecho os olhos, os globos saltam e pulsam chegam a lhe doer. Pelas pálpebras, visualiza a lamparina de fora um resquício, o tempo ali deixava de existir como conhecíamos pois apesar da energia elétrica a principal luz era a de lamparinas, através das pálpebras, visualiza a claridade amarela antiga, da lamparina... Antiga, amarela... Ia ausentando-se... O sono envolve... De repente acorda! Aquela maldita claridade, amarela, antiga, isso tudo é tão nítido que completamente o desperta.

Se não fosse aquilo, ele talvez dormisse, tinha experimentado uma espécie de tonteira fluir, arrastar-lhe o corpo como vertigem... Não tem para onde olhar, isso lhe inquieta o receio de mudar daqui para ali, ele finda por se impressionar, há um terror antigo, vago e pueril das revelações das sombras o medo da escuridão.

O sr. Alcides sempre dizia que ali eles orgulhavam-se de ainda poder dormir com as galinhas. Sim senhor, aqui se deita com as galinhas... – deitava-se com as galinhas e fritava-se como ovos, está inquieto, lhe arde a cabeça, os olhos pesados cada vez mais cheios de areia.

Que horas serão? Serão onze horas? Meia-noite... – a fome já começa a anunciar, ao longe, o som do canto do galo, será possível, não, não pode ser ele escuta novamente agora sabe são três horas, assim falava meu avô recitando trechos da bíblia que papai não gostava:

Quando virdes a abominação da desolação no lugar onde não deve estar o leitor entenda, então os que estiverem na Judéia fujam para os montes; o que estiver sobre o terraço não desça nem entre em casa para dela levar alguma coisa; e o que se achar no campo não volte a buscar o seu manto. Ai das mulheres que naqueles dias estiverem grávidas e amamentando! Rogai para que isto não aconteça no inverno! Porque naqueles dias haverá tribulações tais, como não as houve desde o princípio do mundo que Deus criou até agora, nem haverá jamais. Se o Senhor não abreviasse aqueles dias, ninguém se salvaria; mas ele os abreviou em atenção aos eleitos que escolheu. E se então alguém vos disser: Eis, aqui está o Cristo; ou: Ei-lo acolá, não creiais. Porque se levantarão falsos cristos e falsos profetas, que farão sinais e portentos para seduzir, se possível for, até os escolhidos. Ficai de sobreaviso. Eis que vos preveni de tudo.
(MARCOS, 13; 14:23)

Será que vovô já sabia de tudo? Também era um profeta? – devia ser em tudo ao menos aparentava longas barbas brancas, aquela enorme camisa azul que lhe servia de hábito a forma do de sacerdote, o ar misterioso, olhos baços, tez desbotada e os pés nus; o que tudo concorria para lhe tornar a figura mais próxima da dos antigos profetas.

O galo!... Já lhe parecia ter passado um século aquele devaneio e apenas a diferença do tomar fôlego do galo!... Precisa dormir, descansar, tem de aproveitar o restante da noite, duas horas, sim, pois como dizia seu avô:

Ficai de sobreaviso. Eis que vos preveni de tudo. Naqueles dias, depois dessa tribulação, o sol se escurecerá, a lua não dará o seu resplendor; cairão os astros do céu e as forças que estão no céu serão abaladas. Então verão o Filho do homem voltar sobre as nuvens com grande poder e glória. Ele enviará os anjos, e reunirá os seus escolhidos dos quatro ventos, desde a extremidade da terra até a extremidade do céu. Compreendei por uma comparação tirada da figueira. Quando os seus ramos vão ficando tenros e brotam as folhas, sabeis que está perto o verão. Assim também quando virdes acontecer estas coisas, sabei que o Filho do homem está próximo, às portas. Em verdade vos digo: não passará esta geração sem que tudo isto aconteça. Passarão o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão. A respeito, porém, daquele dia ou daquela hora, ninguém o sabe, nem os anjos do céu nem mesmo o Filho, mas somente o Pai. Ficai de sobreaviso, vigiai; porque não sabeis quando será o tempo. Será como um homem que, partindo em viagem, deixa a sua casa e delega sua autoridade aos seus servos, indicando o trabalho de cada um, e manda ao porteiro que vigie. Vigiai, pois, visto que não sabeis quando o senhor da casa voltará, se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã, para que, vindo de repente, não vos encontre dormindo. O que vos digo, digo a todos: vigiai!

(MARCOS, 13; 23:37)

Precisa dormir descansar, tem de aproveitar o restante da noite, é estranho: um cansaço tão grande, e não conseguir conciliar o sono... O sonho, aquele estranho sonho:

Maria e os apóstolos são transportados em uma nuvem a sua antiga casa em Jerusalém, ela os consola e os abençoa, dizendo: "Ficai com Deus, filhos meus mui amados; não choreis porque os deixo, e, sim, alegrai-vos, porque vou para meu Querido." Logo, apresentando seu testamento, recomendou a João, o Evangelista, que repartisse duas túnicas suas para duas jovens que a haviam servido e acompanhado por muitos anos. Chegando o momento de sua morte, ela se recostou em sua cama, enquanto os apóstolos, de joelhos e em pranto e pesar, a beijavam e se despediam. Anjos do céu começaram a chegar e depois o próprio Cristo, descendo em uma nuvem seres angelicais o rodeiam, em meio de uma luz deslumbrante e de doces harmonias celestiais, levam a alma de Maria ao céu, seu cadáver não se corrompe, desprendendo delicadíssimos perfumes, os apóstolos conduzem o corpo de Maria e depositam-na no vale de Josafá, depois de um tempo, chega Tomé, montado em uma nuvem, e, por engano, desce no Monte das Oliveiras, mas nesse instante observa o maravilhoso espetáculo de Maria aos céus, em corpo e alma, levada por seu Filho Jesus e circundada das hostes celestiais, ela por instante vira-se e conversa comigo: — Filho antes onde havia um agora há dois, pois é necessário, aparecerei novamente, para um gentio de fé, que meu amigo Tomé para os antepassados pregou e para três inocentes, doravante importante são essas aparições que tu conheças para cumprirdes o fado que lhe aguarda, não reclame nem desista, pois quanto mais carregado o trigueiro mais curvado ele fica... – dizendo isso desaparece em meio as hostes celestiais e as nuvens, um barulho ensurdecedor começa acredito que o mundo vai acabar e provavelmente era para acabar pelo menos meu pequeno mundo em Bam, quando abro os olhos minha casa esta balançando não acredito e saio correndo é o tempo certo de ela desmoronar atrás de mim e quando olho ao redor vejo a desolação, toda nossa antiga cidade havia realmente testemunhado o apocalipse e agora vivia a tribulação, a noite eterna, o choro e o ranger de dentes era o que sobrava era o que alentava e nos mantinha com a certeza que ainda vivíamos.

Bam, 30 de Dezembro de 2003.
Quatro dias após a tragédia e ainda não consigo acreditar, não há eletricidade, água, comida, remédios, não há nada que lembre nossa época atual realmente vivemos como nossos ancestrais, procuro no meio dos escombros por alguma esperança, algum sobrevivente, alguma mercadoria que possa ser trocada, negociada, pois o dinheiro não existe e também não tem mais valor, impera o sistema de troca.
Garimpeiros de campos santos, nossos descobrimentos são revelações macabras, cada corpo descoberto é uma alegria e uma tristeza, antítese natural, ante tanto sofrimento e dor surge um milagre um recém-nascido com cinco dias sobreviveu no berço aquecido, sem energia elétrica, água, leite, afeto, um mistério de Deus; no meio dos escombros outro milagre um conjunto de documentos, que irão mudar o rumo de minha vida, jornada, etapa, fé, um assombro de Deus...
— Deixe-me analisar melhor os documentos que encontrastes Hafiz, meu amigo. – digo-lhe estendendo o diário, ele por sua vez recolhe o mesmo e depois de um tempo entrega-me os empoeirados testemunhos, os vestígios, o que sobrou desentranhado da terra, uma terra amarela, quente, seca, acre, terra do deserto, antiga, esquecida, abandonada...
— Professor Augusto correspondência para o senhor entra espavorido, Mauro meu assistente. — Cuidado Mauro, estamos diante de documentos antiqüíssimos não podemos vacilar, senão deixaremos marcas indeléveis nos mesmos, este aqui é Hafiz... Hafiz, meu assistente Mauro.
Os dois jovens entreolham-se e cumprimentam-se respeitosamente, prossigo na análise dos documentos, parecem ser muito precisos e antigos, porém no meu escritório não tenho equipamento suficiente para analisar a autenticidade dos mesmos, lembro-me que devido meu tempo de serviço, dez anos ininterruptos sem distrações ou férias, estava na hora de abandonar-me a uma aventura, pois os anos passavam-se e eu permanecia naquela curva de rio somente acumulando tranqueiras, não, libertar-me-ia daquela sufocante prisão, convidaria Hafiz para ir até o Egito encontrar-me com um velho conhecido, Aziz Tel'Ab Hussein, que certamente esclarecer-me-ia sobre a autenticidade do códex...

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